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Excertos de Cartas a Luísa (parte 2)

17/08/2014

Os excertos seguintes foram retirados do livro Cartas a Luísa, de Maria Amália Vaz de Carvalho. Sendo um livro sobre a sociedade oitocentista (e a condição feminina nessa mesma sociedade), algumas premissas serão anacrónicas, mas outras serão bem actuais.

Auto-retrato de Anna Bilinska-Bohdanowicz. Imagem daqui.

CARTA 9 – A nossa imaginação
     A imaginação é, como todas as faculdades humanas, uma grande força. Mas precisa, como as suas irmãs, de ser aproveitada, dirigida, bem guiada. Devasta ou fecunda, cria ou destrói, imortaliza ou aniquila, consoante o motor que a dirige. [...]
     Sem a imaginação, nós não teríamos nem a centésima parte das coisas belas e das coisas grandes que possuímos! [...]
     Quando o homem padece, desloca a sua agonia; do coração transporta-a para o cérebro e faz dela um poema, um quadro, um romance, uma obra qualquer de arte, quer dizer, de imaginação. [...]
     A imaginação do homem reside-lhe na cabeça, a da mulher tem a sua sede no coração. O homem escreve, pinta, esculpe, ou canta criações da sua fantasia; a mulher não sabe fazer romances, sabe vivê-los; não sabe escrever versos, sabe senti-los. [...]
     Ponhamos a nossa imaginação ao serviço da nossa felicidade.
     Procuremos arrancar à vida o que a vida tem de bom, em vez de querermos fazer da vida uma coisa que ela não pode ser. 


CARTA 10 – A caridade
     A caridade está sendo, realmente, entre as paixões boas, aquela que predomina no nosso tempo. [...]
     Há quem diga que ela, em vez de atenuar a miséria, a agrava e perpetua; há quem diga que ela é um estimulante para a preguiça do proletário; há quem diga que ela afrouxa o amor de família pela criação de asilos, e o amor do trabalho pela imprevidência com que se substitui àqueles a quem competia criar novos elementos de produção para satisfazer as necessidades que todos os dias crescem e avultam em torno de nós. [...]
     E, no entanto, quem ousará afirmar que a miséria, a doença, a prostituição, todas as lepras que contaminam e ensanguentam ainda o corpo das modernas sociedades não seriam muito mais funestas, não se haveriam desenvolvido em muito mais alto grau, se esses asilos, esses hospícios, essas instituições de caridade pública ou de caridade particular não tivessem existido?
     A beneficência pública, organizada como está, tem gravíssimos defeitos orgânicos, tem pecados originais cujo resultado é, porventura, funesto àqueles a quem socorre. De acordo. Mas qual é a instituição perfeita? Mas qual é o problema social que ainda foi resolvido de modo absoluto? Em torno de nós há muitos paliativos, mas há poucos remédios.

CARTA 11 – A ida para um colégio
     Para mim, tenho eu de há muito assente, que na criança, nessa flor delicada e luminosa que as lágrimas maternais orvalham deliciosamente, existe já em gérmen tudo que no homem será egoísmo, vício ou paixão funesta.

CARTA 13 – As mulheres que matam
     Uma mulher, perseguida e caluniada por um bandido de ignóbil espécie, não se contenta com o castigo aplicado pelos tribunais ao seu caluniador e, pegando num revólver, mata-o com uns poucos de tiros, tendo previamente combinado e premeditado a sua vingança.
     Conquanto medonhamente lúgubre, este facto significa tão somente o estado particular de um cérebro feminino, pode mesmo não significar mais nada, nem dar lugar a generalizações sempre um pouco arbitrárias. [...]
     É incontestável que este momento histórico da civilização latina é verdadeiramente assombroso de extravagância e de contraste.
     O que se diz é o desmentido flagrante do que se pensa; o que se pratica está em manifesta contradição com o que se dogmatiza; nega-se em acção o que se respeita em princípio; acata-se em palavras o que se desdenha na aplicação. [...]
     O desprezo do homem pelo homem era um sentimento que ninguém, no fim de contas, se atreveu por muito tempo a combater.

CARTA 15 – Gente moça e gente velha
     A diferença não está nas coisas; a diferença está em nós que vemos a vida com outros olhos, os olhos tristes do desalento e, principalmente, com a amarga ciência que a vida tem para os que viveram.

CARTA 16 – O estilo é a mulher
     Seremos falsas, seremos; saberemos sorrir nas horas de agonia, ocultar sob uma lágrima fingida o triunfo da nossa vaidade, a satisfação do nosso orgulho; mas com a pena na mão, logo que a mulher se consubstancie na escritora, não temos artes para deixar de revelar, ainda ao mais superficial dos observadores, os nossos gostos, as nossas predilecções, os nossos desalentos; as decepções que nos desbotaram na alma a flor ideal da crença juvenil, tudo que somos interiormente, tudo aquilo que o mundo antes de nos ler conhece apenas a aparência e a exterioridade. [...]
     O homem não tem intermitências intelectuais. É sempre inteligente ou é sempre tolo, é sempre activo ou sempre preguiçoso; o homem é hoje o que foi ontem. A mulher é principalmente o que não foi na véspera, nem há-de ser no dia seguinte.
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