Os excertos seguintes foram retirados do livro
Cartas a Luísa, de Maria Amália Vaz de Carvalho. Sendo um livro sobre a sociedade oitocentista (e a condição feminina nessa mesma sociedade), algumas premissas serão anacrónicas, mas outras serão bem actuais.
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Quadro de Franz Ondrusek, encontrado aqui. |
CARTA 1 – educação, moralização
[…]ainda não ouvi proclamar como princípio que o homem devia deixar de ser educado de modo tendente a desenvolver todas as suas faculdades.[…]
A primeira coisa que a mulher não aprende, e que devia aprender, é a pensar. Dominar o seu destino, julgá-lo, modificá-lo quando seja conveniente, eis uma faculdade que só podem ter as que raciocinam e as que sabem. […]
O homem e a mulher completam-se um pelo outro; sem serem iguais, são idênticas as funções que têm de exercer para atingirem o fim do seu destino moral. […] Juntos, são um organismo completo, harmónico, que funciona na ordem natural das coisas; separados, desengrenados, produzem em torno de si a confusão e a anarquia. […] A primeira coisa que eu desejaria é que a mulher se compenetrasse dos seus deveres para os cumprir religiosamente, e dos seus direitos para os fazer rigorosamente respeitar.
CARTA 2 – educação, moralização
No mundo moderno a mulher representa um pouco o papel que no mundo pagão representaram os escravos, que no mundo feudal representaram os servos, que no mundo monárquico representaram os plebeus. […]
O encanto, a formosura, o espírito, são adoráveis na mulher – quem o contesta? – mas como complemento do seu modo de ser, não como bases dele. […]
A ciência dos nossos dias tem um dogma fundamental, que eu não sei dizer em termos técnicos e definitivos, mas cuja significação vem a ser a seguinte:
Tudo está relacionado com tudo; não há uma única verdade de que nós tenhamos feito aquisição, que não esteja ligada à que a precede e à que se lhe segue; quebrado que seja um elo à cadeia dos conhecimentos que hoje constituem o nosso património intelectual, interrompe-se a série dos fenómenos, quebra-se a harmonia do todo, desfigura-se a perfeição do conjunto.
Presentemente, saber alguma coisa é ter a ideia de tudo.
Este encadeamento de todas as ideias, esta ligação estreita de todas as verdades, esta relação íntima de todas as ciências, esta influência recíproca que os factos, ainda os na aparência mais remotos, exercem uns nos outros, é a mais bela descoberta do século; é por tê-la feito que o homem ocupa hoje o lugar proeminente que ele tem no universo. Ele partiu da lei que domina a evolução dos astros, e veio de dedução em dedução achar a lei que determina a evolução das sociedades. […]
CARTA 3 – A propósito dos liceus femininos
Por mais que alguns espíritos orgulhosamente independentes o pretendam negar, a verdade é que hoje, nós os povos latinos, e muito especialmente o povo português, recebemos da França, inteiramente fabricadas por ela, as opiniões, às quais sujeitamos o nosso modo de ver social, político e literário.
É a França que nos fornece a literatura e a moda, a cozinha e a arte, as inovações democráticas e as mobílias, a devoção e o teatro, os cretonnes de que forramos as nossas salas, e as ideias de que forramos os nossos cérebros.
A pouco e pouco – impotência invencível ou criminoso desleixo? – deixamos de ter o mínimo vislumbre de iniciativa nacional em qualquer destas importantes questões.
Não serei eu quem me revolte contra esta tendência geral.
Estou muito dentro da fascinação para me lembrar de combatê-la. […]
CARTA 5 – Conflitos modernos
Triste, crudelíssimo estado de coisas, que proscreve um ideal sem ter criado outro.
CARTA 6 – Conflitos modernos
O mundo que habitamos, grão de areia gravitando no espaço, ponto imperceptível no imenso livro do universo, perdeu a sua importância, a sua significação, os seus direitos por tantos séculos sagrados. Nós não somos o centro de onde tudo parte e do qual tudo depende. Somos o elo de uma cadeia infinita, somos a parte mínima de um sistema cuja imensidade nos deslumbra e nos humilha.
A nossa grandeza verdadeira começou no momento em que podemos compreender quanto éramos pequenos!
CARTA 8 – As crises do casamento
Chegar ao ponto em que a dor moral desapareça é tão impossível como chegar ao ponto em que se elimine a dor física. […]
Só pode, não direi resignar-se, mas compreender e sujeitar-se à fatalidade das coisas […]
Não, que ela não se console, que ela cubra de um luto eterno o coração donde para sempre fugiu a confiança e a fé, mas que se sacrifique!
Sacrifique-se aos seus filhos, se tiver ventura de os ter, como anjos guardadores do seu desnorteado espírito.
Sacrifique-se ao dever, ao duro dever, se não achar nenhum afecto digno desta imolação suprema, e verá que há delícias austeras neste renunciamento que parece tão incompensado e tão cruel!