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As teorias políticas como «passatempo estético» (excerto de Os Demónios, de Dostoiévski)

20/10/2013

Ilustração de Fritz Eichenberg, encontrada aqui.
Pois bem: o excerto de hoje da obra de Dostoiévski explica a teoria de Chigaliov para uma civilização instruída e justa e, na impossibilidade de a concretizar (até porque os restantes participantes da reunião consideram-na descabida), Liámchin apresenta a sua contra-teoria.

É interessante notar a opinião de Verkhovenski de que as teorias políticas não passam de um passatempo estético. A bem dizer, a maioria das teorias políticas, mesmo nos dias de hoje, não passam do papel - por serem difíceis de concretizar na realidade, por não serem boas, por não servirem ao interesse de toda a população, por inúmeras outras razões. De qualquer maneira, pôr em prática uma revolução é bastante difícil, bem como mudar o mundo só pela teoria.

Assim sendo, como se explica uma revolução? Que não foi bem pensada na teoria ou que, pelo contrário, foi a única solução viável depois de muito reflectir? 

O excerto é retirado da edição da Relógio D'Água, de 2010, com tradução de António Pescada. Mais sobre a obra aqui.




- Peço a palavra – disse Chigaliov, sombrio mas com voz firme.
- Tem a palavra – permitiu Virguinski.
O orador sentou-se, ficou calado durante meio minuto e depois proferiu em voz solene:
- Meus senhores…
(…) O orador interrompido parou com ar digno. (…)
- Meus senhores, ao pedir a vossa atenção – recomeçou Chigaliov – e, como verão mais adiante, ao pedir também a vossa ajuda num ponto de primacial importância, devo fazer uma introdução.
(…) Chigaliov recomeçou:
- Tendo consagrado a minha energia ao estudo da organização social da futura sociedade que há-de substituir a presente, cheguei à convicção de que todos os criadores de sistemas sociais, desde os tempos mais antigos até ao nosso ano de 187…, eram uns sonhadores, uns contadores de fábulas e uns tontos que a si mesmo se contradiziam, que não percebiam nada das ciências naturais, incluindo a do estranho animal que se chama homem. Platão, Rousseau, Fourier, as colunas de alumínio, tudo isso talvez sirva para os pardais, mas não para a sociedade humana. Mas como a futura forma social é necessária precisamente agora, quando todos nós nos preparamos finalmente para agir, para não continuarmos a matutar, proponho o meu próprio sistema de organização do mundo. Aqui está! – e bateu com a mão num caderno – Queria expor o meu livro a esta assembleia da maneira mais sucinta possível; mas vejo que é necessário acrescentar ainda muitos esclarecimentos verbais e, por isso, toda a exposição exigirá pelo menos umas dez sessões, segundo o número de capítulos do meu livro. (Ouviram-se risos) Além disso, desde já declaro que o meu sistema não está concluído. (Mais risos.) Enredei-me nos meus próprios dados e a minha conclusão contradiz de modo directo a ideia inicial em que me baseio. Partindo de uma liberdade ilimitada, termino num ilimitado despotismo. Acrescentarei no entanto que, além da minha fórmula de solução social, não pode haver nenhuma outra.
Os risos aumentavam cada vez mais, mas eram sobretudo os convidados jovens e, por assim dizer, não iniciados que se riam. Os rostos da dona da casa, de Lipútin e do professor coxo exprimiam um certo enfado.
- Se o senhor não consegue compor o seu sistema e chegou ao desespero, o que podemos nós fazer? – observou com cautela um dos oficiais.
- Tem razão, senhor oficial – Chigaliov virou-se bruscamente para ele – Tanto mais que usou a palavra «desespero». Sim, cheguei ao desespero; no entanto, nada pode substituir aquilo que está exposto no meu livro e não há outra saída; ninguém pode inventar mais nada. Por isso me apresso, sem perder mais tempo, a pedir a esta sociedade que, depois de ouvir a exposição do meu livro ao longo de dez sessões, exprima a sua opinião. Mas se os membros não quiserem ouvir-me, separemo-nos já desde o princípio: os homens a ocuparem-se ao serviço do Estado, as mulheres para as suas cozinhas porque, ao rejeitar o meu livro, não encontrarão outra saída. Ne-nhu-ma! E, ao deixarem passar o tempo, prejudicam-se a si mesmos, porque mais tarde terão de coltar inevitavelmente a isto mesmo.
Gerou-se um certo bulício: «O que lhe deu, é louco ou quê?» - perguntavam algumas vozes.
- Todo o problema está, portanto, no desespero de Chigaliov – concluiu Liámchin – e a questão essencial é: ele deve estar desesperado ou não?
- O desespero de Chigaliov é uma questão pessoal – declarou o colegial.
- Proponho que se vote em que medida o desespero de Chigaliov afecta a causa comum e ao mesmo tempo se devemos ouvi-lo ou não – decidiu alegremente um oficial.
- O problema aqui não é esse – interveio finalmente o professor coxo. Em geral falava como que com um sorriso irónico, de modo que era difícil perceber se falava com sinceridade ou se estava a brincar – O problema aqui, meus senhores, não é esse. O senhor Chigaliov está muito seriamente devotado à sua tarefa e ao mesmo tempo é demasiado modesto. Conheço o livro dele. Propõe, como solução final o problema, a divisão da humanidade em duas partes desiguais. Uma décima parte obtém a liberdade pessoal e um poder ilimitado sobre os restantes nove décimos. Estes últimos devem perder a sua personalidade e transformar-se numa espécie de rebanho e, com uma submissão infinita, atingir por uma série de transfigurações a inocência primitiva, uma espécie de paraíso primitivo, embora trabalhando. As medidas propostas pelo autor para privar de vontade nove décimos da humanidade e os transformar num rebanho, através da reeducação de gerações inteiras, são extremamente notáveis, fundadas em dados da Natureza e muito lógicas. Podemos não concordar com algumas conclusões, mas é difícil duvidar da inteligência e dos conhecimentos do autor. É pena que a condição dos dez serões seja completamente incompatível com as circunstâncias, pois poderíamos ouvir muitas coisas curiosas.
- Será possível que esteja a falar a sério? – perguntou madame Virguínskaia ao professor coxo, até um pouco alarmada – Então este homem, não sabendo o que fazer com as pessoas, reduz nove décimos delas à escravidão? Eu já suspeitava dele há muito. (…)
- E, além disso, trabalhar para os aristocratas e obedecer-lhes como a deuses é uma infâmia! – observou a estudante, furiosa.
- Eu proponho não uma infâmia, mas o paraíso terrestre, e não pode haver outro na terra – conclui Chigaliov com autoridade.
- Pois eu, em vez do paraíso, – gritou Liámchin – pegaria nesses nove décimos da humanidade, se não houvesse mais nada a fazer com eles, fazia-os explodir e deixava apenas um punhado de pessoas cultas, que começariam a viver de maneira científica.
- Só um palhaço pode falar assim! – inflamou-se a estudante.
- Ele é um palhaço, mas útil – murmurou-lhe madame Virguínskaia.
- É possível que essa fosse a melhor solução do problema! – disse ardentemente Chigaliov, virando-se para Liámchin – Por certo não sabe a coisa profunda que conseguiu exprimir, senhor jovial. Mas como a sua ideia é quase impossível de aplicar, devemos limitar-nos ao paraíso terrestre, já que assim lhe chamamos.
- Mas que grande absurdo! – deixou Verkhovenski escapar, como que sem querer. (…)
- Não foi por causa de Chigaliov que eu disse que era um absurdo – balbuciou Verkhovenski – Vêem, meus senhores, - continuou, erguendo um pouco os olhos – em minha opinião, todos esses livros, Fourier, Cabet, esse «direito ao trabalho», esse chigaliovismo, é tudo uma espécie de romances que se podem escrever às centenas de milhar. Um passatempo estético. Compreendo que aqui nesta cidadezinha os senhores se entediem e, por isso, se lancem ao papel escrito.
- Permita-me, - disse o coxo remexendo-se na cadeira – embora nós sejamos provincianos e, portanto, dignos de piedade, sabemos, no entanto, que até agora não aconteceu no mundo nada de novo em que lamentássemos não ter reparado. E propõem-nos, através de uma folhas feitas no estrangeiro, que nos unamos o formemos círculos com o único objectivo da destruição universal, a pretexto de que, por mais que tratemos o mundo, nunca conseguiremos curá-lo mas, se cortarmos cem milhões de cabeças e assim ficarmos mais aliviados, podemos mais facilmente saltar para cima da fossa. É uma bela ideia, sem dúvida, mas pelo menos tão inconciliável com a realidade como o «chigaliovismo» a que o senhor agora mesmo se referiu com tanto desprezo. (…)
- Cortar cem milhões de cabeças é tão difícil de concretizar como transformar o mundo pela propaganda. Talvez seja mesmo mais difícil, em especial na Rússia – arriscou de novo Lipútin.
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