O excerto de hoje é um diálogo entre Karmazínov, escritor algo influente, e Verkhovenski, um dos líderes do grupo revolucionário. O excerto é retirado da edição da Relógio D'Água, de 2010, com tradução de António Pescada. Mais sobre a obra aqui.
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- O senhor, ao que parece, veio para cá porque lá se esperava uma epidemia depois da guerra?
- N-não, não foi nada por isso. – continuou o senhor Karmazínov, destacando indulgentemente as suas frases e, a cada viragem de um canto para o outro, agitava levemente a perna direita, só um pouco – De facto, – riu-se com algum fel – tenciono viver o mais possível. Há na nobreza russa qualquer coisa que se desgasta com extrema rapidez, em todos os sentidos. Mas eu quero ficar decrépito o mais tarde possível e agora vou-me mudar para o estrangeiro definitivamente; lá o clima é melhor, as construções são de pedra e tudo é mais sólido. A Europa durará até ao fim dos meus dias, acho eu. Que lhe parece?
- Eu sei lá.
- Hum. Se de facto a Babilónia europeia ruir e a queda for grande (no que estou completamente de acordo consigo, embora pense que até ao fim dos meus dias chegará), a verdade é que na nossa Rússia não há nada para ruir, comparativamente falando. No nosso país não cairão pedras, mas ficará tudo desfeito em lama. A santa Rússia é a coisa menos preparada no mundo para resistir seja ao que for. O povo simples ainda resiste mais ou menos, graças ao Deus russo; mas o Deus russo, segundo os últimos dados, é muito pouco seguro e mal resistiu à reforma camponesa ou, pelo menos, foi fortemente abalado. E depois vêm os caminhos-de-ferro, depois vêm vocês… já não tenho fé no Deu russo.
- E no europeu?
- Não acredito em nenhum. Fui caluniado perante a juventude russa. Sempre simpatizei com todos os movimentos dela. Mostraram-me esses panfletos locais. As pessoas olham-nos com perplexidade, porque toda a gente se assusta com a forma, mas todos acreditam no seu poder, ainda que não o reconheçam. Toda a gente está em queda há muito tempo e toda a gente sabe que não tem onde se agarrar. Estou convencido do êxito dessa propaganda secreta devido ao facto de que a Rússia é agora por excelência o lugar do mundo onde tudo pode acontecer sem a mínima oposição. Compreendo até bem de mais por que motivo os russos abastados fogem todos para o estrangeiro, e cada vez mais de ano para ano. Fazem-no simplesmente por instinto. Se o navio vai afundar-se, os ratos são os primeiros a abandoná-lo. A santa Rússia é um país de madeira, pobre e… perigoso, um país de pobres vaidosos nas camadas superiores e, na sua maioria, vivem em cabanas miseráveis. Ela ficará feliz com uma saída qualquer, basta explicar-lhe qual. Só o governo ainda quer resistir, as agita o cacete às escuras e atinge os seus partidários. Tudo aqui está perdido e condenado. A Rússia, tal como está, não tem futuro. Eu tornei-me alemão e considero isso uma honra.
- Não, o senhor começou por falar dos panfletos; diga tudo, o que acha deles?
- Toda a gente tem medo deles, portanto são poderosos. Denunciam abertamente as mentiras e provam que não há onde possamos agarrar-nos nem em que apoiar-nos. Falam alto, quando toda a gente está calada. O que há neles de mais eficaz (apesar da forma), é a ousadia até agora inédita de encarar a verdade de frente. Essa capacidade de olhar a verdade cara a cara é própria apenas da actual geração russa. Não, na Europa não são ainda tão ousados: ali é o reino da pedra, ainda há em que apoiar-se. Por aquilo que vejo e posso julgar, toda a essência da ideia revolucionária russa consiste na negação da honra. Agrada-me que isso seja expresso com tanto denodo. Na Europa ainda não compreenderam isso, mas entre nós é precisamente a isso que se vão lançar. Para o homem russo, a honra só por si é apenas um fardo inútil. E sempre foi um fardo, ao longo de toda a sua história. Será mais fácil atraí-lo ao proclamar abertamente o «direito à desonra». Eu pertenço à velha geração e, confesso, ainda defendo a honra, mas apenas por hábito. Gosto simplesmente das velhas formas, admitamos que por falta de coragem; é preciso viver o resto da vida de algum modo.