*Excerto retirado da edição da Relógio D'Água, de 2010, com tradução de António Pescada.
*Mais sobre o livro aqui.
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Ilustração de Mikhail Vrubel, intitulada Cabeça do Demónio. Imagem daqui. |
O diálogo, nesta parte, é entre Kiríllov, que se quer matar por convicção, e o narrador.
- Aquilo das cabeças foi inventado por ele, tirado de algum livro, foi o primeiro a falar-me disso, e percebe mal; e eu apenas procuro as razões por que as pessoas não ousam matar-se; nada mais. E isso não importa.- Como não ousam? Pois há assim tão poucos suicídios?- Muito poucos.- Acha realmente?Não respondeu. Levantou-se, pensativo, e pôs-se a caminhar para trás e para a frente.- Em sua opinião, o que é que impede as pessoas de se suicidarem? – perguntei.- Ele olhou-me com ar distraído, como se tentasse lembrar-se de que estávamos nós a falar.- Eu… eu ainda sei muito pouco… há dois preconceitos que as impedem, duas coisas; apenas duas, uma muito pequena e outra muito grande. Mas a pequena também é muito grande.- Qual é então a pequena?- A dor.- A dor? Será assim tão importante… neste caso?- É a mais importante. Há dois géneros: aqueles que se matam por uma grande tristeza, ou por raiva, ou loucura, ou tanto faz… esses de repente. Esses pensam pouco na dor, fazem-no de repente. E há os que o fazem por raciocínio: esses pensam muito.- Mas há os que se matam por raciocínio?- Muitos. Se não houvesse preconceito, seriam mais; muitíssimos mais; todos.- Todos, realmente?Ele não respondeu.- Mas não haverá maneiras de morrer sem dor?- Imagine – disse ele, parando à minha frente –, imagine uma pedra do tamanho de uma casa grande; a pedra está pendurada, o senhor debaixo dela; se a pedra cai em cima de si, na cabeça, sentirá dor?- Uma pedra do tamanho de uma casa? Claro que mete medo.- Não falo de medo; terá dor?- Uma pedra como uma montanha, de um milhão de arrobas? É claro que não causaria dor.- Mas ponha-se realmente debaixo dela, e enquanto ela estiver pendurada, terá muito medo de que doa. Qualquer maior cientista, o maior médico, todos, todos terão muito medo. Cada qual saberá que não dói, e cada qual terá muito medo de que doa.- Bem, e qual é a segunda causa, a grande?- O outro mundo.- Quer dizer o castigo?- Isso tanto faz. O outro mundo, só o outro mundo.- Mas não há ateus, que não acreditam nada no outro mundo?De novo não deu resposta.- O senhor julga talvez por si mesmo?- Ninguém pode julgar senão por si mesmo – disse ele, corando – Toda a liberdade será quando for indiferente viver ou não viver. É o objectivo de tudo.- Objectivo? Mas então ninguém quererá talvez viver?- Ninguém – disse ele resolutamente.- O homem tem medo da morte, porque ama a vida, é assim que eu entendo – observei – e é assim que manda a Natureza.- Isso é infâmia e nisso está todo o engano! – os seus olhos cintilaram – Vida é dor, vida é medo, e o homem é infeliz. Agora é tudo dor e medo. Agora o homem ama a vida, porque ama dor e medo. Assim o fizeram. Agora a vida dá-se pela dor e o medo, e nisso está todo o engano. Agora o homem ainda não é o que deve ser. Haverá um homem novo, feliz e orgulhoso, para o qual será igual viver ou não viver, esse será o homem novo. Quem vencer a dor e o medo será ele mesmo Deus. E aquele Deus não haverá.- Portanto, em sua opinião, aquele Deus existe?- Não existe, mas existe. Na pedra não há dor, mas no medo da pedra há dor. Deus é a dor do medo da morte. Quem vencer a dor e o medo será Deus. Então, nova vida, novo homem, tudo novo… Então dividirão a história em duas partes: do gorila até ao aniquilamento de Deus e do aniquilamento de Deus até…- Até ao gorila?- …Até à mudança física da terra e do homem. O homem será Deus e mudará fisicamente. E o mundo também mudará, e os actos mudarão, e os pensamentos, e os sentimentos. Que lhe parece, o homem mudará então fisicamente?- Se for indiferente viver ou não viver, então todos se matarão e essa será talvez a mudança.- Isso não importa. Matarão o engano. Quem quiser principal liberdade deve ser capaz de se matar. Quem for capaz de se matar descobriu o segredo do engano. Para lá disso não há liberdade; aqui está tudo, para além não há nada. Quem for capaz de se matar é Deus. Agora, qualquer um pode fazer que não haja Deus e não haja nada. Mas ainda ninguém o fez.- Houve milhões de suicidas.- Mas não por isso, sempre por medo e não por isso. Não para matar o medo. Quem se mata para matar o medo, esse torna-se logo Deus.
Depois de mandar assassinar Chátov, com o intuito de unir o grupo revolucionário e com a desculpa de o outro querer denunciar os companheiros, Piotr Stepánovitch (um dos líderes do grupo) pede a Kiríllov que, como já tinham combinado, se suicide e que se declare culpado do assassinato e dos panfletos revolucionários. Kiríllov vacila, mas depois cede.
- Você parece estar a vangloriar-se por se ir matar?
- Sempre me surpreendeu que todos continuem a viver – disse Kiríllov, sem ouvir a observação.
- Hum, admitamos que é uma ideia, mas…
- Macaco, apoias-me para me dominar. Cala-te, não percebes nada. Se Deus não existe, eu sou Deus.
- Pois eu nunca consegui perceber esse ponto: porque é que você é Deus?
- Se Deus existe, toda a vontade é dele e eu não posso escapar à vontade dele. Se não existe, toda a vontade é minha e sou obrigado a proclamar o meu arbítrio.
- Arbítrio? Mas é obrigado porquê?
- Porque toda a vontade passou a ser minha. Será possível que ninguém em todo o planeta, tendo acabado com Deus e acreditando no seu arbítrio, se atreva a proclamar esse arbítrio no ponto mais vital? Isso é como o pobre que recebeu uma herança e que, assustado, não ousa aproximar-se do saco, considerando-se impotente para se apoderar dele. Eu quero proclamar o meu arbítrio. Que seja eu o único, mas faço-o.
- Pois faça.
- Sou obrigado a matar-me, porque o ponto mais alto do meu arbítrio é matar-me a mim próprio.
- Mas você não será o único a matar-se; há muitos suicidas.
- Com motivo. Mas sem qualquer motivo, só por livre-arbítrio, sou o único.
«Não se vai matar» - passou de novo pela cabeça de Piotr Stepánovitch.
- Sabe – observou com irritação –, eu no seu lugar, para mostrar o meu livre-arbítrio, não me matava a mim mesmo, mas outra pessoa qualquer. Poderia ser útil. Eu indico-lhe alguém, se você não tem medo. Nesse caso talvez já não se mate hoje. Podemos chegar a acordo.
- Matar outra pessoa será o ponto mais baixo do meu livre-arbítrio, e nisso te revelas todo. Eu não sou tu: eu quero o ponto mais alto, e mato-me.
«Chegou lá por si mesmo» - resmungou Piotr Stepánovitch, furioso.
- Tenho a obrigação de proclamar a minha descrença – disse Kiríllov, caminhando pelo quarto. – Para mim não há ideia mais elevada do que a da inexistência de Deus. Tenho a favor desta minha ideia a história da humanidade. O homem não tem feito mais que inventar Deus para viver e não se suicidar; nisso consiste toda a história mundial até agora. Eu sou o único em toda a história mundial que, pela primeira vez, se recusou a inventar Deus. Que todos fiquem a saber de uma vez para sempre.
«Não se mata» - alarmou-se Piotr Stepánovitch.
- Quem é que fica a saber? – atiçou-o ele – Só estamos aqui nós os dois; talvez o Lipútin?
- Que todos fiquem a saber; todos saberão. Não há nada secreto que não se descubra. Foi Ele que o disse.
E, com um entusiasmo febril, indicou a imagem do Salvador diante da qual ardia uma lamparina. Piotr Stepánovitch enfureceu-se completamente.
- Portanto, ainda continua a acreditar n’Ele e acendeu-lhe uma lamparina; «por via das dúvidas», não será?
O outro não respondeu.
- Sabe, eu acho que você é mais crente, talvez, do que um pope.
- Em quem? N’Ele? Escuta – Kiríllov parou, olhando à sua frente com um olhar fixo, frenético – Escuta uma grande ideia: houve na terra um dia, e no meio da terra erguiam-se três cruzes. Um dos crucificados tinha tanta fé que disse a outro: «Estarás hoje comigo no paraíso». Passou o dia, ambos morreram, foram-se e não acharam nem o paraíso, nem a ressurreição. O dito não se cumpriu. Escuta: este homem era superior em toda a terra, constituía aquilo por que a terra devia viver. Todo o planeta, com tudo o que nele existe, sem este homem é apenas loucura. Não houve, nem antes nem depois, outro como Ele, e nunca haverá, nem por milagre. Nisso está o milagre, em que não houve nem haverá nunca outro igual. E se é assim, se as leis da Natureza não pouparam nem mesmo Este, não pouparam sequer o seu milagre, mas obrigaram-no a viver e morrer também no meio da mentira, então todo o planeta é uma mentira e assenta na mentira e na irrisão. Portanto, as próprias leis do planeta são mentira e um vaudeville dos diabos. Para quê viver? Responde se és homem.
- Esse é outro aspecto da questão. Acho que você confundiu aqui duas causas diferentes; e isso é muito suspeito. Mas permita-me, e se você for Deus? Se terminou a mentira e você percebeu que toda a mentira resultava de ter havido esse Deus anterior?
- Finalmente compreendeste! – exclamou Kiríllov com arrebatamento – Portanto é possível compreender, se um homem como tu compreendeu! Compreendes agora que toda a salvação para todos consiste em provar este pensamento? Quem o provará? Eu! Não compreendo como podia um ateu saber que Deus não existe e não se matar de imediato. Ter a consciência de que Deus não existe e não ter ao mesmo tempo consciência de que ele próprio se tornou Deus é um absurdo, pois de outro modo não deixará de se matar. Se compreender, torna-se czar e já não se matará mas viverá na maior glória. Mas um deles, o primeiro, deve necessariamente matar-se, pois de outro modo quem começará e provará? Serei eu a matar-me necessariamente, para começar a provar. Sou Deus ainda contra a minha vontade e sou infeliz, porque sou obrigado a declarar o meu livre-arbítrio. Todos são infelizes porque todos receiam declarar o seu livre-arbítrio. O homem tem sido agora tão infeliz e tão pobre porque tem medo de declarar o mais importante ponto do seu livre-arbítrio e o exerce às escondidas, como um rapaz da escola. Sou horrivelmente infeliz, porque tenho um medo horrível. O medo é a maldição do homem… Mas eu declaro o meu livre-arbítrio, tenho a obrigação de crer em que não creio. Começo e acabo, e abro a porta. E salvo. Só isso salvará todos os homens e os transformará fisicamente já na próxima geração; porque no seu actual aspecto físico, tanto quanto tenho pensado, não pode de maneira nenhuma ser homem sem o antigo Deus. Durante três anos procurei o atributo da minha divindade e encontrei: o atributo da minha divindade é o livre-arbítrio. Isso é tudo o que posso fazer para mostrar no ponto mais elevado a minha insubmissão e a minha terrível nova liberdade. Porque ela é terrível. Mato-me para mostrar a minha insubmissão e a minha terrível liberdade.