Chegámos a falar, não sei como, do dever, ou melhor, da tentação de manifestar toda a verdade, até as mais dolorosas e perigosas verdades.
Primeiro. Na introdução, Papini adverte o leitor para o facto de o livro não pretender ser uma autobiografia, sendo apenas um “livro de recordações pessoais”. Poder-se-ia pensar que é a mesma coisa, mas desengane-se quem assim pense.
O livro é, de facto, um conjunto de recordações pessoais do autor, sendo que Papini consegue ter a habilidade de, num livro deste tipo, falar mais de “terceiras pessoas”, como ele denomina, e de acontecimentos do que dele próprio, dando ao leitor alguns vislumbres da vida intelectual italiana de fins do século XIX e princípios do século seguinte.
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Florença, inícios do século XX. Imagem daqui. |
Segundo. O aspecto intelectual e artístico é o único que aparece relatado no livro, sendo que Papini descreve as suas relações com outros escritores, com filósofos, com poetas, com artistas, com professores…
Há, é verdade, aspectos da vida pessoal/familiar que também são relatados, mas estão relacionados com o lado intelectual. É o caso do primeiro capítulo (O afago do anticristo), onde Papini descreve que, enquanto criança, foi digno de receber umas festinhas na cabeça dadas por Nietzsche.
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Melancolia de um dia bonito. Giorgio de Chirico. Imagem daqui. |
Terceiro. A escrita do livro é, como seria de esperar, coloquial, não deixando por isso de ser eloquente. O livro está dividido em vários capítulos, cada um relatando um acontecimento ou descrevendo uma pessoa. O interessante é que Papini explica o porquê de ter escolhido determinada pessoa ou facto para escrever sobre, e quem lê o livro percebe que o que é contado marcou o autor.
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O escritor. Imagem daqui. |
Quarto. Em suma, este é um livro de memórias cujo autor parece estar em segundo plano nos factos descritos, não por exagerada modéstia, mas porque era mais importante o que acontecia intelectualmente do que acontecia pessoalmente com ele.
O que é um óptimo ponto de partida, não só para saber da vida intelectual da época, como também para perceber como eram as relações entre os artistas das mais variadas áreas e a influência cultural e social que eles tinham – que não era pouca.
(Ah, e porque, ao que tudo indica, ninguém gosta de pessoas que se acham importantes ao ponto de centrarem um livro inteiro em si mesmas, a não ser que tenham tido uma vida verdadeiramente extraordinária.)