(…) Nasci, vivo no tempo, e não sei o que o tempo é; encontro-me num ponto entre duas eternidades, como dizem os nossos sábios, e nenhuma ideia tenho da eternidade. Sou composto de matéria; penso e nunca pude instruir-me sobre o que produz o pensamento; ignoro se o entendimento é em mim uma faculdade, como a de andar, de digerir, e se penso com a minha cabeça como agarro algo com as minhas mãos. Não somente me é desconhecido o princípio do meu pensamento, como me está igualmente oculto o princípio dos meus movimentos: não sei porque existo. Não obstante, todos os dias me fazem perguntas sobre todos estes assuntos; há que responder; e não tenho nada de válido a dizer. Falo muito, e fico perturbado e envergonhado comigo mesmo depois de ter falado. (…)De quando em vez, quase caio no desespero, quando penso que depois de todas as minhas pesquisas não sei nem de onde venho, nem o que sou, nem para onde vou, nem no que me tornarei. (…) Pareceu-me que quantas mais luzes acendia no seu entendimento e quanto mais sensível se tornava o seu coração, mais infeliz ficava. (…) Eu não quereria ser feliz com a condição de ser imbecil. (…)Existe, no entanto, uma terrível contradição nessa forma de pensar, porque, afinal, o que está em causa? Ser feliz. Que importa ter inteligência ou ser néscio? E há mais: os que se dão por satisfeitos com o que são têm a certeza da sua satisfação; os que pensam não têm tanta certeza de pensar correctamente. É, portanto, evidente que há que optar por não ter senso comum, por pouco que esse senso comum contribua para o nosso mal-estar.Não obstante, não encontrei ninguém disposto a tornar-se imbecil para se tornar satisfeito. Do que concluo que, se fazemos caso da felicidade, fazemos ainda mais caso da razão. Mas, depois de ter reflectido, afigura-se que preferir a razão à felicidade é ser muito insensato.
*Do livro: A Aventura da Memória e Outros Contos. Desculpem-me, mas não me lembro de que história este texto é retirado.