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Utopia, de Thomas More

02/10/2011

“A utopia, o elemento utópico, tem sido e é ainda um dos aspectos mais dinamizadores da história da cultura ocidental.

Por outro lado, consistindo a utopia numa idealização da vida dos homens, ela pressupõe uma atitude crítica em face de formas históricas da realidade e uma exploração do campo diferencial das possibilidades.

Com efeito, quando Thomas More, na sua Utopia, imagina a vida dos habitantes da ilha do mesmo nome, não está a contar uma parábola dinamizadora nem a apelar para um mundo fantástico, com leis diferentes do mundo real, para pôr a nu ou denunciar, por comparação com um estado de perfeição inacessível, a Inglaterra do século XVI.

Se assim fosse, More podia estar possuído de uma atitude crítica em face da realidade, mas não ofereceria qualquer alternativa histórica e concretamente operável para essa realidade criticada.

Ora, como diz o romancista alemão Robert Musil, uma utopia é uma possibilidade que pode efectivar-se no momento em que forem removidas as circunstâncias provisórias que obstam à sua realização. Evidentemente, por isto devemos aqui entender: circunstâncias ao alcance da acção transformadora dos homens.

Destas aproximações podemos partir para uma compreensão histórica da obra de Thomas More.

More é, na verdade, portador de um projecto humanista de transformação social e este projecto é, em seu entender, perfeitamente viável para o século em que vive. Toda a sua Utopia pretende provar isto mesmo.

Assim, o autor transporta-nos a uma ilha imaginária, cuja civilização material é de nível idêntico ao da civilização europeia do século XVI, as onde os habitantes souberam explorar de forma superior os recursos ao seu alcance, mediante uma organização social assente em critérios racionais. E More demonstra, mais ou menos explicitamente, que a aplicação desses mesmos critérios à civilização europeia resultaria num considerável aperfeiçoamento da vida comum de povos do Ocidente.

Assim, com meios técnicos idênticos, os Utopianos de More sofrem muito menos que os europeus do século XVI os efeitos degradantes do trabalho socialmente necessário, em virtude dos encargos deste se encontrarem repartidos equitativamente por todos os membros do corpo social, em vez de recaírem sobre os ombros – como acontecia na Europa – das classes oprimidas. Assim também, a pobreza é mais eficazmente combatida da ilha da Utopia, quer por a sua organização do trabalho permitir uma produção mais volumosa, quer porque os Utopianos praticam um sistema tendencialmente igualitário de repartição dos bens sociais.

Nos outros aspectos da vida social, Thomas More indica igualmente como os Utopianos puderam, por um esforço teórico e prático de racionalidade, resolver problemas que correspondiam às mais graves questões do século XVI europeu: o problema da criminalidade e da sua repressão, o problema da família e do matrimónio, o problema dos conflitos religiosos, entre outros.

Enfim, por todos estes motivos, encontrará o leitor na Utopia uma importante fonte não só de documentação sobre as realidades sociais do século XVI, isto é, dos começos da Idade Moderna Europeia, como poderá confrontar-se com um dos aspectos capitais do humanismo renascentista, de que More é representante privilegiado: «o sentido da terra», a atenção às questões sociais e políticas, sempre presentes na reflexão filosófica e moral dessa época.

Antes de terminarmos estas linhas, acentuemos que a divulgação desta obra do velho humanista inglês se justifica plenamente ainda sob outro aspecto: Thomas More é, com efeito, um dos precursores de todos os grandes utopistas, sem darmos qualquer carácter pejorativo a tal designação, da cultura de que somos herdeiros. Continuadores de More são, por exemplo, os iluministas, os socialistas utópicos (Fourier, sobretudo) e, nos nossos dias, Herbert Marcuse, autor de uma obra intitulada precisamente O Fim da Utopia, em que o conhecido teórico libertário defende a tese, implícita já na obra de More, de que o projecto «utópico» de uma sociedade livre de indivíduos livres se encontra ao alcance do mundo de hoje.”

Prefácio de Maria Isabel Gonçalves Tomás, presente na 3º edição (1995) da obra, da Europa-América.

*Imagem: quadro de Bruegel, encontrado aqui.
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