José Saramago. Outro autor que certamente dispensará qualquer apresentação, de tão bem conhecido que é. O seu nome esteve sempre envolto em polémicas, quer pelas opiniões do próprio escritor ou simplesmente porque as pessoas não são capazes de perceber a sua obra literária. Talvez o maior problema do mundo literário seja este: o só se entender as grandes obras muito depois de elas terem sido feitas.
Caim não é excepção à regra. Confesso, comprei este livro (há um ano) por curiosidade, curiosidade de saber a razão de tal polémica: em suma, neste obra Saramago coloca deus como autor moral de um crime.
De que fala, então, o livro? Esta obra relata-nos a história de caim, que matou o seu irmão abel por este ser o preferido do senhor. Quando o senhor vai condenar caim, este põe a culpa para as suas costas, afirmando que se deus não preferisse o sacrifício de seu irmão abel, não o teria matado.
Nisto, o senhor concorda em não castigar caim e nem deixar que nada lhe aconteça (nomeadamente ser morto), marcando-lhe a testa. A partir daqui, caim viaja para longe, no tempo e no espaço, e assiste a vários episódios bíblicos, por exemplo, a construção torre de Babel ou o grande dilúvio, que vão desde a árvore do fruto proibido até à arca de noé.
Normal é que a viagem de caim é relatada com as interpretações de Saramago dos episódios bíblicos, interpretação essa que é simples: o senhor é tão boa pessoa quanto nós, humanos - e o facto de o autor escrever o nome do senhor com letra minúscula dá-nos a ideia de que deus não é mais que nós, seres humanos.
Quer dizer, além de tão filho da puta como o senhor, abraão era um refinado mentiroso, pronto a enganar qualquer um com a sua língua bífida, que, neste caso, segundo o dicionário privado do narrador desta história, significa traiçoeira, pérfida, aleivosa, desleal e outras lindezas semelhantes. (…) Que vai você fazer, velho malvado, matar o seu próprio filho, queimá-lo, é outra vez a mesma história, começa-se por um cordeiro e acaba-se por assassinar aquele a quem mais se deveria amar, Foi o senhor que ordenou, foi o senhor que ordenou, debatia-se abraão.
Saramago, neste livro, não é o anti-cristo nem o diabo, é apenas um escritor com uma filosofia de vida e com uma mensagem a transmitir, também ela bastante simples: não se pode ser-se dogmático.
A ideia foi do senhor, que queria tirar a prova, A prova de quê, Da minha fé, da minha obediência, E que senhor é esse que ordena a um pai que mate o seu próprio filho, É o senhor que temos, o senhor dos nossos antepassados, o senhor que já cá estava quando nascemos, E se esse senhor tivesse um filho, também o mandaria matar, perguntou isaac, O futuro o dirá, Então o senhor é capaz de tudo, do bom, do mau e do pior, Assim é, Se tu tivesses desobedecido à ordem, que sucederia, perguntou isaac, O costume do senhor é mandar a ruína, ou uma doença, a quem lhe falhou, Então o senhor é rancoroso, Acho que sim (…)
A mensagem é mesmo esta: devemos questionar os dogmas da religião, saber o que é certo e o que é errado, aceitar o certo e contestar o errado, em suma, pensarmos por nós próprios, e não por quem interpretou a religião por nós.
Este episódio, que deu origem à primeira definição de um até ignorado pecado original, nunca ficou bem explicado. Em primeiro lugar, mesmo a inteligência mais rudimentar não teria qualquer dificuldade em compreender que estar informado sempre será preferível a desconhecer, mormente em matérias tão delicadas como são estas do bem e do mal, nas quais qualquer um se arrisca, sem dar por isso, a uma condenação eterna num inferno que então ainda estava por inventar. Em segundo lugar, brada aos céus a imprevidência do senhor, que se realmente não queria que lhe comessem tal fruto, remédio fácil teria, bastaria não ter plantado a árvore, ou ir pô-la noutro sítio, ou rodeá-la por uma cerca de arame farpado. (…)
A história desenvolve-se em torno de deus ser autor moral de um crime. Pensemos por esta perspectiva: se deus criou o mundo e tudo que existe nele, e no mundo há o bem e o mal, porque não o poderemos condenar por um crime moral? Se deus não quer o mal, porque o permite? A questão que Saramago coloca, efectivamente, é a de que porque permitiu deus que caim matasse abel?
Que fizeste com o teu irmão, perguntou, e caim respondeu com outra pergunta, Era eu o guarda-costas de meu irmão, Mataste-o, Assim é, mas o primeiro culpado és tu, eu daria a vida a vida pela vida dele se tu não tivesses destruído a minha, Quis pôr-te à prova, E tu quem és para pores à prova o que tu mesmo criaste, Sou o dono soberano de todas as coisas, E de todos os seres, dirás, mas não de mim nem da minha liberdade, Liberdade para matar, Como tu foste livre para deixar que eu matasse a abel quando estava na tua mão evitá-lo (…)
Este livro está repleto destas pequenas discussões, entre deus e caim, se assim as poderemos considerar, onde Saramago demonstra que caim deveria ser o nosso modelo: o modelo duma pessoa que pensa por si mesma, que questiona deus, o porquê disto e o porquê daquilo, talvez não por uma incansável procura do saber, mas por não concordar com o que o senhor faz.
O ciúme é o seu grande defeito, em vez de ficar orgulhoso dos filhos que tem, preferiu dar voz à inveja, está claro que o senhor não suporta ver uma pessoa feliz (…)
A bem dizer, este livro não é contra o cristianismo (sendo apenas um ponto de vista expresso duma óptima maneira) mas sim contra o conformismo de muitos seguidores desta religião. Em suma, este livro é um apelo a quer tenhamos uma mente aberta…
*O nome das personagens apresentam-se com letra minúscula, como o estão no próprio livro.
**Mais sobre a obra e a respectiva polémica aqui.
***Na imagem, uma caricactura do escritor que representa como a Igreja o vê.