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O Ingénuo, de Voltaire

11/09/2010


Voltaire. Escusado é, certamente, fazer qualquer tipo de introdução ou apresentação deste filósofo e escritor. Apenas, e porque interessa para este texto, digo que foi um dos grandes nomes do Iluminismo, lutando pelas liberdades consideradas essenciais ao ser humano, como a liberdade religiosa.

Nesta sua obra, intitulada O Ingénuo, consegue ver-se essa luta pelas liberdades através da sátira que o autor faz aos costumes da sociedade francesa. Primeiro, convenientemente, o resumo da história.

O prior de Notre-Dame de la Montagne e a sua irmã, a menina Kerkabon, passeavam à beira-mar quando duma embarcação de ingleses, lhes veio parar à frente um hurão que apenas por curiosidade “tinha resolvido ver como eram as costas da França”. O prior e a irmã ficaram encantadíssimos com o rapaz e acolheram-no. A notícia de que havia um hurão num priorado espalhou-se rapidamente e a “boa sociedade” (como Voltaire lhe chama), entre os quais estão os Saint-Yves, aparece para jantar e, claro, observar o hurão.

O hurão, com a sua simplicidade e ingenuidade (daí o título desta obra), encanta todos os presentes, que decidem baptizá-lo e convertê-lo ao cristianismo, aliás, a principal intenção dos irmãos Kerkabon. Porém, os irmãos Kerkabon descobrem que o hurão é seu sobrinho, filho do irmão que “embarcou na fragata Andorinha, em 1669, para ir servir no Canadá”. Naturalmente, os irmãos ficam emocionadíssimos.

Depois do seu baptizado, o hurão apaixona-se pela madrinha, a menina Saint-Yves, que também se apaixona por ele, contra todas as convenções sociais e religiosas. O hurão quer casar-se com ela, mas o irmão de Saint-Yves acaba por metê-la num convento.

Entretanto, por ter livrado a província dum ataque dos ingleses, o hurão vai a Versalhes ser condecorado mas, devido a um mal entendido, acaba encarcerado com um jansenista culto, que lhe vai instruindo o espírito.

Quando a menina Saint-Yves sai do convento, foge de casa para soltar o noivo mas, para isso, tem de prestar favores sexuais; depois de muito reflectir, fá-lo. Quando o hurão e o jansenista regressam a casa, a menina Saint-Yves desfalece de vergonha, acabando por morrer.

O hurão e o jansenista tornam-se grandes amigos e o hurão presta serviços no exército.

Não vou estar aqui a fazer uma análise extensa do livro, até porque, confesso, ele seja filosófico demais para se expressar numa breve análise (e eu não sou dada a filosofias). Contudo, somente deixo aos leitores alguns excertos da obra que demonstram a escrita, a sátira e a filosofia de Voltaire:

O prior, já entrado em anos, era um óptimo eclesiástico, querido dos seus paroquianos, depois de o ter sido, noutros tempos, das suas paroquianas. O que principalmente lhe granjeara grande consideração fora o facto de ser o único clérigo da região que não precisava de que o levassem em braços para a cama depois de cear com os confrades. Sabia assaz honestamente de teologia e quando Santo Agostinho o fatigava divertia-se a ler Rabelais; por isso toda a gente dizia bem dele. – p. 7

Breve se espalhou a nova de que havia um hurão no priorado. A boa sociedade local deu-se pressa em comparecer para cear. (…) Mas, por fim, [o hurão] farto de tanto barulho, disse-lhes com bastante afabilidade, embora com certa firmeza: “Meus senhores, na minha terra fala cada um por sua vez: como querem que eu lhes responda, se não me deixam ouvir?”. A razão faz sempre com que os homens caiam em si por alguns momentos”. – p. 9

- Dizei-me, cavalheiro, qual é o vosso nome?
- Sempre dei pelo nome de Ingénuo – replicou o hurão -, e em Inglaterra sempre me chamaram assim, pois digo sempre ingenuamente o que penso, assim como faço tudo quanto quero. – p. 10

O senhor prior, que possuía na sua biblioteca a gramática hurã, presente do Reverendo Padre Safar Théodat, recoleto, famoso missionário, levantou-se da mesa, por um momento, para consultá-la. Voltou, ofegante de ternura e alegria; reconheceu no Ingénuo um verdadeiro hurão. Discutiu-se a multiplicidade das línguas e chegou-se à conclusão de que, sem a Torre de Babel, todos falariam francês. – p. 11

-Credo! Meu Deus! – dizia a menina de Saint-Yves. – Como é que os hurões não são católicos? Então os Reverendos Padres Jesuítas não os converteram a todos?
O Ingénuo garantiu-lhe que na sua terra não se convertia ninguém; que um verdadeiro hurão nunca mudava de parecer e que na sua própria língua não havia termo sequer para designar inconstância. (…) O Ingénuo respondeu que em Inglaterra deixavam viver cada um como lhe apetecia. – p. 13

O Ingénuo, segundo o seu costume, acordou ao raiar da aurora, ao cantar do galo, ou, como na Inglaterra e na Hurónia lhe chamam: o clarim do dia. Não era como a boa sociedade que se definha na cama, ociosa, até o Sol ter percorrido metade do seu curso, incapaz de dormir ou de se erguer, consumindo horas preciosas num estado que não é vida nem morte, e que ainda se lamenta de que a existência seja curta. – p. 14

Era preciso instruí-lo, o que parecia difícil, pois o abade de Saint-Yves supunha que os homens que não nasciam em França eram desprovidos de senso comum. – p. 16

O bailio não deixou de o interrogar sobre esses livros.
- Confesso-vos – disse o Ingénuo – que me parece ter adivinhado neles qualquer coisa e além disso nada mais compreendi.
O abade de Saint-Yves, ao ouvir isto, observou que era assim mesmo que ele sempre tinha lido e que a maior parte dos homens não lia de outra maneira.
- Naturalmente haveis lido a Bíblia? – disse ele ao hurão.
- Nunca, senhor abade: não a encontrei entre os livros do meu capitão… nem nunca ouvi falar nisso.
- Aqui está de que força são esses ingleses! – exclamava a menina de Kerkabon – ligam mais importância a uma peça de Shakespeare, a um plum-pudding e a uma botija de rum do que ao Pentateuco. Por isso nunca foram capazes de converter ninguém na América. – p. 17

O seu raciocínio [do Ingénuo] era tanto mais vivo e puro quanto era certo a sua infância nunca ter sido sobrecarregada com as inutilidades e sandices com que oprimem a nossa: as coisas entravam-lhe no cérebro sem mácula. – p. 18

O Ingénuo, que era pessoa de bom senso e equidade, discutiu mas acabou por reconhecer o seu erro (caso bastante raro na Europa entre as pessoas que discutem). – p. 19

Sentiu o seu triunfo, mas era cedo para lhe medir as consequências. – p. 23

O Ingénuo replicou-lhe que não tinha necessidade do consentimento de ninguém; que lhe parecia extremamente ridículo perguntar aos outros o que cada um deve fazer; que, quando duas partes estão de acordo, não é precisa uma terceira para as consertar. – p. 25

É preciso que se saiba que não há país algum no mundo em que o amor não transforme em poetas os enamorados. – p. 26

Vejo que se fazem todos os dias para aí muitas coisas que não figuram no vosso livro e que não se faz nada daquilo que o livro diz; confesso-vos que isso me surpreende e aborrece [sobre a bíblia]. – p. 27

Se precisais de rodear-vos de tantas precauções, é porque não sois pessoas dignas. (…) Aplacaram-no com palavras lisonjeiras; deram-lhe esperanças; são estas as duas ciladas em que caem os homens. – p. 30

É bem mais fácil batermo-nos contra os ingleses na Baixa-Bretanha do que encontrarmos em Versalhes as pessoas com quem queremos falar. – p. 41

Chamam-lhes selvagens: são apenas grosseiras pessoas de bem, enquanto que os homens deste país são todos uns refinados patifes. – p. 45

Ora, não será autor do mal quem nos abandona a ele? – p. 47

(…) dessas brochuras periódicas em que certos homens, incapazes de produzirem seja o que for, desacreditam as obras dos outros. – p. 52

Quer-me parecer que os juízos dos homens são muitas vezes movidos pela ilusão, pela moda, pelo capricho. – p. 55

O prior apresentou-se em casa do reverendo padre de La Chaise; estava com a menina Du Tron e não podia conceder audiência a priores. Foi bater à porta do arcebispo; o prelado estava fechado com a linda senhora de Lesdiguières, ocupado em assuntos eclesiásticos. Dirigiu-se à casa de campo do bispo Meaux; este, na companhia da menina Mauléon, examinava o Amor Místico, da Sr.ª Guyon. – p. 58

Mas que fazer em Versalhes? Jovem, bonita, sem conselhos, sem amparo, desconhecida, disposta a tudo, como chegar até junto de um guarda do rei? – p. 60

(…) [Saint-Pouange] lhe insinuou que ela conseguiria o que desejava desde que começasse por lhe dar a ele as primícias do que reservava para o namorado. – p. 66

- Que abominável pecador! – disse-lhe o padre Tout-à-Tous. – Era bom que me dissésseis o nome de homem tão vil: é com certeza um jansenista qualquer; denunciá-lo-ei a sua reverência o padre La Chaise, que o mandará encarcerar onde presentemente está o querido que deveis desposar.
A pobre rapariga, após grande embaraço e grandes irresoluções, disse, enfim, o nome de Saint-Pouange.
- Monsenhor de Saint-Pouange! – exclamou o jesuíta – Ah! Minha filha, isso é outra coisa; é primo do maior ministro que nós ainda tivemos, homem de bem, protector de boa causa, bom cristão; ele não pode ter tido um tal pensamento; deveis ter compreendido mal. – p. 68

Segundo o dicionário da língua portuguesa, ingénuo é definido como aquele que não tem malícia, que é inocente, natural e simples, tal como o hurão desta história. Consegue perceber-se a crítica de Voltaire aos costumes sociais através do Ingénuo, rapaz simples que ouve o coração (“a natureza”, pelas palavras do autor) em vez de ouvir os outros, os costumes. Podemos perceber, também, implicitamente, a luta pela igualdade – principalmente nas partes da história em que o hurão mostra ser melhor que os próprios franceses.

Em termos técnicos, este livro é muito bom. A escrita, tal como a linguagem, é simples e sempre com um toque de ironia que lhe acrescenta humor (daí a sátira…). O livro está dividido em 20 capítulos pequenos que tornam a leitura acessível e menos aborrecida. Não me é permitido falar do estilo de Voltaire, pois foi a primeira obra que li dele.

Contudo, este é um clássico que deve ser lido por todos e uma versão online do mesmo pode ser lida aqui.

*Na imagem: Voltaire. Imagem encontrada aqui.
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