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Diário de Uma Criada de Quarto, de Octave Mirbeau

05/10/2014

Pormenor da capa de uma edição francesa.

*O texto tem spoilers.

Um. Este livro relata a vida de Célestine como criada de quarto. As suas tarefas, os seus sentimentos, as suas amizades com os colegas, as suas discussões com os patrões (o que é óbvio, já que se trata de um diário).

O diário é escrito enquanto Célestine trabalha na casa dos Lanlaire, na província. A patroa é azeda, o patrão é atiradiço, os colegas são aborrecidos, os vizinhos são intrometidos – a distracção, portanto, reside no diário que escreve e nos livros que lê. À partida, estes factores fariam com que Célestine se demitisse, mas ela não o faz porque o dinheiro é necessário e porque o destino de uma criada desempregada é bastante incerto, como o de qualquer pessoa de baixo nível social dos finais do século XIX.

No entanto, a sua vida poderia estar garantida se soubesse aproveitar as oportunidades que teve: patrões velhos e ricos, patroas bondosas, patrões que não se importavam com nada… – todas estas oportunidades desperdiçadas por orgulho, por uma vontade de humilhar os patrões ou mesmo por burrice.

Na casa dos Lanlaire, Célestine torna-se amiga de Joseph, o seu colega misterioso. A dada altura, já quando eram bastante amigos, Joseph pede a Célestine que se case com ele para tornar o seu plano de negócio viável: ser dono de um café onde Célestine desempenharia o papel de prostituta.

Como seria de esperar, Célestine hesita durante semanas até decidir aceitar a proposta do seu futuro marido, visando a liberdade com que sempre sonhara (seria a sua própria patroa, ganharia algum dinheiro, teria a vida descansada).

Entre o momento em que Célestine chegou à casa dos Lanlaire até à sua partida com Joseph, muito se passou: ela recusou o atrevimento do patrão; desconfiou que Joseph fosse o violador e assassino de uma criança; a sua colega Marianne suspeitava que estava grávida do patrão; recusou trabalho e uma vida melhor na casa vizinha (cujo dono era velho e rico, estando disposto a deixar-lhe a sua fortuna em testamento – proposta que Célestine recusou para fazer a sua vida com Joseph); suspeitou que foi Joseph que roubou a prata aos patrões, para levar a cabo o seu projecto com o café.




Dois. Uma das características deste livro é a intersecção de várias histórias com a narrativa da vida de Célestine na casa dos Lanlaire, não só as suas memórias, como também as memórias das suas amigas, que estão nas mesmas circunstâncias que Célestine.

A criada de quarto conta estas histórias no seu pouco tempo livre, não só para passar esse tempo, mas também para minimizar o seu sofrimento (a recordação dos bons momentos alegra-lhe, a dos maus faz-lhe reconhecer que a sua situação poderia ser pior). Compreende-se, assim, a intersecção das histórias: o autor simplesmente recria o processo complicado do pensamento humano, que não é linear, mas confuso e descontínuo.

Além de recriar o pensamento humano, a intersecção destas histórias é o que faz com que o livro seja realista, descrevendo a situação precária dos criados e a burguesia em decadência, relatando igualmente a relação muitas vezes conflituosa entre as duas classes sociais.

Outra das características deste livro são as pontas soltas da história: não se sabe se Joseph cometeu os crimes que suspeitava Célestine, não se sabe o destino final dos Lanlaire, nem se sabe se Célestine realmente se prostituiu e se conseguiu ter a liberdade que tanto desejava (apesar de ter ido para o café com Joseph).

O final, assim, é aberto, deixando o leitor imaginar o fim que quer para as personagens; há, é claro, evidências ao longo do livro que ajudam a desvendar o fim das personagens, mas o final é na mesma aberto.

Tudo isto envolvido numa escrita coloquial, com uma linguagem por vezes vulgar, o que é apropriado, tendo em conta que é a personagem principal que narra a história – e essa personagem não tem uma educação de alto nível, obviamente.


Três. Um dos aspectos que me impressionou na edição do livro foi a sua sinopse – o que, aliás, foi o que me levou a comprá-lo. Já pouco se vêem, nos dias de hoje, sinopses bem feitas, das que explicam o intuito do livro e o contextualizam na obra do autor e na sua época. Ei-la, com algumas supressões:

     Octave Mirbeau (1850 – 1917) é justamente considerado um dos mais notáveis escritores franceses do fim do século XIX e princípios do século XX, quer pelo vigor e pelo realismo da sua prosa, quer pela forma como escalpelizou a sociedade francesa – e sobretudo a parisiense – do seu tempo.
     […] Diário de Uma Criada de Quarto – uma obra em que o espírito de observação de Mirbeau se patenteia em toda a sua pujança e em que nos é dada a imagem fiel do ambiente em que se digladiam os elementos de duas classes que se odeiam e desprezam mutuamente, embora dependam uma da outra e não se possam dissociar.
     De um lado, a alta burguesia triunfante, volúvel e corrupta; do outro, a criadagem explorada, tratada desdenhosamente, cuja condição humana quase sempre se nega, e que, vítima da engrenagem social que a marginaliza e esmaga, recorre para sobreviver a todas as artimanhas com que os fracos se vingam dos poderosos: a crítica mordaz, a difamação sub-reptícia, a velhacaria, a insolência e até o roubo.
     Célestine, a autora do diário, é bem o produto acabado dessa sociedade, a criada galante e sem preconceitos morais que caminha na vida couraçada de cinismo, a vítima de uns e o algoz de outros, sem exacta noção do bem e do mal. Mas poderia ser outra coisa?

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