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O Evangelho de Saramago e a opinião dos outros

31/07/2012

Imagem daqui.



«É a obra mais polémica de José Saramago e aquela que, indirectamente, o levou a sair de Portugal e a refugiar-se na ilha espanhola de Lanzarote. Ficou para a história o desentendimento com o então subsecretário de estado da Cultura Sousa Lara, que considerou o livro ofensivo para a tradição católica portuguesa e o retirou da lista do Prémio Europeu de Literatura. Com um José destroçado por ter fugido e deixado as crianças de Belém nas mãos dos assassinos de Herodes; com uma Maria dobrada e descrita, logo no início do livro, em pleno acto de conhecer homem; com um Jesus temeroso, um Judas generoso, uma Madalena voluptuosa, um Deus vingativo e um Diabo simpático, não era de esperar outra reacção das almas mais sensíveis e mais devotas do catolicismo português. E verdadeiramente viperinas são as várias páginas onde o escritor português se entretém a descrever minuciosamente os nomes e a forma como morreram os mártires dos primeiros séculos do cristianismo. Assim se escreveram os heréticos Evangelhos segundo Saramago, para irritação de muitos e prazer de alguns. Como convém.» (Diário de Notícias, 9 de Outubro de 1998)

Talvez por me ter tornado ateia que não consiga perceber como o Evangelho segundo Jesus Cristo poderá ter ofendido várias sensibilidades quando foi editado. Aliás, não tendo eu qualquer crença, nunca um livro me afrontará, o que me leva a colocar a questão se, fosse eu crente, continuaria a ler este tipo de narrativas de uma maneira imparcial e benevolente.

Acima de tudo, quer crente ou descrente, sou respeitadora da opinião dos outros e, igualmente, da literatura e da arte em geral, acreditando que qualquer um de nós pode exprimir essa mesma opinião, sem que ofenda mortalmente outras pessoas.

Ofender… sempre haverá alguém que ficará ofendido, pois sempre haverá alguém do contra e nem se pode agradar a todos; o máximo que poderei afirmar, neste contexto, é que uma pessoa é livre de exprimir a sua opinião desde que não interfira com a felicidade dos outros indivíduos.

Mexer com a felicidade dos outros através da opinião é dificílimo, senão mesmo impossível, pois como poderá uma opinião tornar-nos felizes ou infelizes? É uma opinião, diríamos nós, todos a têm, estão no seu direito, se nos fôssemos importar com todas as opiniões não faríamos mais nada…

É neste patamar que coloco os livros e quem os escreve. Como expressão de opinião e como formadores dela (lembremo-nos que até na história mais fantasiosa o autor coloca nela parte de si), não nos podemos sentir fatalmente atacados por eles, a não ser, claro está, que o livro seja propositadamente escrito para nós (e só para nós).

Em boa verdade, ninguém é obrigado a ler o que não quer no seu tempo livre (excluo aqui, obviamente, os livros que se leem por obrigação académica), portanto não vejo o mal que um livro poderá causar – até porque um livro só provoca o bem-estar de uma pessoa.

Naturalmente, com as ofensas causadas por um livro, vêm as críticas. A principal delas, estou em crer, é a de que, sendo Saramago descrente, não deveria analisar os meandros, as miudezas e as minuciosidades da religião – deduzindo-se, daqui, que não teria domínio para tal. O livro, inclusive, foi eliminado da lista de livros portugueses candidatos ao Prémio Europeu de Literatura (pelo que, anos depois, o Nobel ganho por Saramago deve ter sido um estalo de luva branca àqueles que vetaram O Evangelho segundo Jesus Cristo).

Pois é precisamente pelo escritor ter conhecimento do que está a narrar que tem o pleno direito de criticar. Lembrei-me, neste âmbito, de Nietzsche, que estudou Teologia e depois escreveu obras como O Anticristo – sabendo, genuinamente, do que estava a escrever.

O conhecimento bíblico de Saramago é comprovado pelo próprio livro, que não é fácil de entender por quem não sabe patavina de religião (eu) – nada que umas pesquisas aqui e umas perguntas acolá não resolvam.

O meu ponto de vista é que estas críticas de Saramago não poder falar de religião porque, primeiro, é ateu, segundo, por ser ateu, não teria conhecimento da religião, são bastante e incrivelmente infundadas.

Se o autor tem um pleno conhecimento dos assuntos religiosos, porque não falar deles, quer a bendizê-los ou a maldizê-los? A questão, aqui, é que o escritor, sendo conhecedor dos assuntos que narra, tem autoridade para o fazer. Pior seria se decidisse escrever um livro deste calibre sem ter qualquer ciência no assunto – um verdadeiro escândalo.

Não nego que o livro seja uma crítica aberta à religião cristã, que o é, apenas afirmo que é uma crítica muitíssimo válida, independentemente das crenças ou descrenças do autor. O problema, arrisco-me a dizer, é que o livro, como qualquer outro, foi levado à letra, e não foi interpretado como o que é, ou seja, como uma obra literária.
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