Imagem de Marc Camille Chaimowicz, encontrada aqui. |
Seguem-se partes de alguns capítulos deste livro inquietante (aqui no bom sentido da palavra), que nos consegue fazer sentir a agonia da personagem principal - um homem que observa o passar do tempo através da sua janela:
33(...)Decidi morrer para não assistir ao desaparecimento das casas. O cemitério tem estado agitado, os coveiros não descansam um segundo. Alguém lhes leva cerveja de hora a hora para que não caiam nas campas que estão a abrir. Um deles escorregou, bateu com a cabeça na pega de um caixão e desmaiou. Os familiares do morto puseram-se aos gritos. Insultaram o homem e a seguir todos os coveiros. Depois apareceu um padre vindo de outro funeral. Trazia um livro na mão e um saco de plástico enfiado no braço. Os familiares agradeceram os préstimos do cura, mas explicaram-lhe que o morto era ateu. O coveiro que desmaiara foi a cambalear até ao posto clínico, ninguém lhe prestou mais atenção.Ontem tentei pela sexta vez acabar comigo. Da primeira, o veneno não funcionou. Foi um desgosto, estive dias inteiros deitado na cama com dores. Vomitei para o chão. Nem sequer me consegui levantar para ir à janela. Quase perdera a visão. Ao olhar para a parede do quarto não distinguia onde começava a estante dos livros. Os quadros pareciam reais, havia pessoas dentro deles e falavam, relatavam episódios estranhos, capítulos inteiros de livros, romances que nunca chegarei a ler, biografias, compilações de crónicas, recolhas integrais de obras poéticas.A música parou. Houve um clarão por cima dos telhados e o contador da luz explodiu. Decidi então cortar os pulsos.Dessa vez, não consegui encontrar as veias. Os punhos pareciam ter mirrado após os ter embebido em álcool durante uma semana. De todas as coisas existentes na loja de ferragens que fica ao lado do cemitério, são as lâminas que me metem mais impressão. Não se ouvem quando rasgam a carne e quando se desembrulham cortam quase sempre os dedos. São finas demais, fazem lembrar unhas arrancadas aos presos. Mesmo assim tentei, mas o sangue não saiu.
34(...)Semanas depois, quando espetei a faca no peito, a lâmina foi de encontro à carteira e partiu-se. Olhei para aquilo, metade da faca na mão, e desatei a rir. Queria descer as escadas e contar a alguém, gritar para dentro do café ou da padaria, mas uma coisa bizarra estava a acontecer na rua. Uma escavadora demolia o muro do cemitério que estava virado para as casas e uma pilha de caixões amontoava-se na parte de dentro. (...)
35A minha outra tentativa de suicídio foi aparatosa. Saí e atirei-me subitamente para o alcatrão do momento em que um carro passava, mas o condutor assustou-se. Aos desviar-se, o automóvel foi de encontro a uma bola de pedra que estava agarrada ao passeio e voou contra a montra onde estava o cágado. Os moradores correram para lá, já a dona da loja se desfazia em lágrimas. Uma das rodas dianteiras tinha esmagado o bicho. Ninguém socorreu o condutor, nem se aproximou de mim. Fiquei durante algum tempo estendido no alcatrão, mas nenhum outro carro passou. Só me levantei quando ouvi a sirene de uma ambulância. Não gostaria de ser transportado num veículo daqueles, debaixo de um barulho ensurdecedor com dois enfermeiros de roda de mim a criticar-me. (...)
36Passei a corda por um gancho que prendi no tecto. Fiz o laço com segurança e experimentei com um boneco do meu peso. (...)
O livro: Rocha, Jaime. Anotação
do mal. Lisboa: Sextante Editora, 2007 (primeira edição). 98 páginas.