O escritor |
Alguém disse: «Os olhos são o espelho da alma!»Talvez fosse mais justo compará-los às janelas, pelas quais as impressões dum universo luminoso, brilhante e multicolor, penetram na alma. Quem saberia descrever ou definir a parte do nosso moral que se relaciona directamente com as sensações estritamente visuais? Todo o homem é um anel na cadeia infinita das vidas que por ele passam, desde as profundezas do passado até às do futuro. E eis que um acidente fatal tinha querido fechar essas janelas dos elos a uma criança cega, cuja vida inteira devia ficar mergulhada numa escuridão completa, mas resultava daí, por isso, que estavam partidas todas as fibras pelas quais a alma reage às impressões luminosas? Não, a sensibilidade interior à luz devia persistir e, apesar das trevas em que se debatia, esta existência era chamada a ser transmitida às gerações ulteriores. A criança cega possuía uma alma humana, completa e normal, rica de todas as suas particulares características; e como toda a particularidade traz em si mesma o desejo da mais plena realização, a alma sombria do pequenito era habitada por uma aspiração insaciável de claridade.Sob a forma vaga de «possibilidades», forças hereditárias dormitavam, latentes, em qualquer parte, no mistério do seu foro íntimo, e estavam prontas a correr ao encontro do primeiro raio luminoso que lhe saltasse aos olhos. Mas as janelas continuavam fechadas, o destino da criança estava marcado.Jamais ele veria esse raio claro! E toda a sua existência se passaria na noite!Essa noite estava povoada de fantasmas. Se a existência do pequeno decorresse no meio de privações e dissabores, talvez que o seu espírito fosse atraído pelas causas exteriores dos seus desgostos.Mas as pessoas que o rodeavam afastavam tudo aquilo que o pudesse entristecer. Asseguravam-lhe o sossego, uma paz ideal, e, então, aquele mesmo silêncio que no seu coração reinava permitia distinguir-se ainda mais claramente a sua irritação interior. Na tranquilidade e na noite que o invadiam erguia-se a consciência, inquieta e incessante, duma necessidade que procurava realizar-se; e atormentava-o um desejo doloroso, que exigia a acção das forças sonolentas que nele existiam em potencial, sem encontrar saída.Daí o número de pressentimentos imprecisos e de impulsos parecidos com esses desejos de ascensão que todo o homem experimenta a infância e se manifesta nessa idade por fantasias maravilhosas.Daí, enfim, esforços instintivos do pensamento infantil, que se reflectiam nas feições por uma expressão ansiosa e doentia. Estas «possibilidades» hereditárias, de que não podia tirar utilidade para a sua vida, das representações visuais surgiam fantasmagóricas na sua pobre cabecinha e aí circulavam, destituídas de forma, vagas e obscuras, fragmentárias, provocando-lhe sempre esforços penosos, sem resultados definidos.A natureza revoltava-se contra o «caso individual» que violava a lei comum da vida.Quarta parte do capítulo 4
Sobre o autor: Vladimir Korolenko nasceu em 1853 na Ucrânia, e morreu em 1921. Em 1879, devido às suas ideias liberais, foi desterrado para a Sibéria. Em 1885 voltou para a Rússia (para Nijni Novogorod) onde escreveu e publicou o conto O Sonho de Makar, que o elevou à primeira fila dos escritores russos. Ocupou no coração do povo russo o lugar deixado por Tolstoi, de quem foi um continuador.
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