“Mesmo que o sonho não se realize, é pelo menos bastante emocionante tê-lo sonhado”
Somerset Maugham nasceu em Paris em 1874 e foi um dos mais famosos romancistas e dramaturgos do século XX. Estudou Medicina na Alemanha e em Londres mas nunca chegou a exercer, tendo sido condutor de ambulâncias durante a Primeira Guerra Mundial e espião. Viajou quase por todo o mundo, facto que influenciou a sua escrita. (mais sobre o autor aqui)
O Fio da Navalha, publicado em 1944, conta a história duma das suas personagens literárias mais fascinantes, desde a Primeira à Segunda Guerra Mundial, passando pela Grande Depressão, através das sociedades americana, inglesa e francesa. (Baseado nas notas de edição)
A história deste livro, apesar de ser relativamente simples no que toca à sua estrutura (desde que entendamos as analepses) é bastante encantadora (devido ao carisma das personagens). De que trata a história, então?
Primeiramente, centra-se na personagem de Larry e na sua infindável busca para encontrar, segundo o próprio designa, “resposta para perguntas sem resposta” (o verdadeiro conhecimento) e o sentido da vida, depois e na Primeira Guerra Mundial um amigo seu ter morrido para lhe salvar a vida. Larry faz esta busca através de livros e de várias viagens que faz pelo mundo (onde tem contacto com várias pessoas de culturas diferentes). Larry é a personagem principal que, curiosamente, está sempre quase ausente, devido ao facto de estar constantemente a aparecer/desaparecer.
A outra metade da história, por assim dizer, pertence às outras personagens que mantinham relações de amizade com Larry. Quando este regressa aos EUA depois do sucedido na Primeira Guerra Mundial, já não é a mesma pessoa: muito reservado e procurando o sentido da vida, Larry não se importa com o dinheiro e, ao invés de continuar os estudos ou simplesmente arranjar um emprego, ele apenas procura a sua felicidade (que não tem a certeza do que seja), o conhecimento das coisas que desconhece, uma reflexão – facto que é inconcebível para a maior parte das pessoas de suas relações, principalmente para Isabel, sua namorada e Elliott, tio desta, muito bem posicionado na sociedade.
“- Pobre Larry – disse ela, rindo. – Não está a insinuar que ele anda a aprender grego para preparar um assalto a um banco?
Também eu me ri.
- Não, claro que não. O que estou a tentar dizer-lhe é que existem homens movidos por um impulso tão forte de fazer determinada coisa que não conseguem controlar-se, que têm simplesmente de a fazer. E estão preparados para sacrificar tudo para satisfazer a sua ânsia.
- Mesmo as pessoas que os amam?
- Sim, sim.
- Isso já não sei. – Foi a minha vez de sorrir.
- Que vantagem terá o Larry em aprender línguas mortas?
- Há pessoas que têm um desejo interessado pelo conhecimento. Não é um desejo ignóbil
- De que vale acumular conhecimento se não se pretende fazer nada com ele?
- Talvez ele pretenda. Talvez o simples facto de aprender lhe dê satisfação suficiente, do mesmo modo que a um artista dá satisfação suficiente produzir uma obra de arte. E talvez seja apenas um passo para chegar mais longe.
- Se era conhecimento que ele desejava, por que não quis ir para a faculdade quando voltou da guerra? Era o que Dr. Nelson e a minha mãe queriam que ele fizesse.
- Falei com ele sobre isso em Chicago. Uma licenciatura não lhe traria qualquer benefício. Tenho uma vaga suspeita de que ele tinha uma ideia muito precisa do que queria e sentia que não poderia alcançá-lo na faculdade. Sabe como é, no tocante ao conhecimento há o lobo solitário e há aquele que acompanha a alcateia. Julgo que o Larry é uma daquelas pessoas que não pode seguir outro rumo senão o seu.
(…)
- Sente-se infeliz?
- Não, infeliz propriamente não. (…) Detesto pensar que o Larry possa estragar assim a sua vida.“
Segunda parte, capítulo 7
Larry parte para Paris para procurar o que nem ele próprio sabe exactamente o quê e, passado algum tempo, quando Isabel o vai visitar, recusa-se a casar com ele meramente porque não poderia viver numa casa modesta com apenas 3000 dólares por ano (ela que sempre viveu uma vida de rica e, portanto, assim queria continuar).
Posto isto, Isabel casa-se com Gray, melhor amigo de Larry e que, como trabalhava na empresa do pai e era competente no que fazia, ganhava o suficiente para sustentar as pretensões de Isabel de viver uma vida de luxo. Assim sendo, Larry está, digamos, “livre” para empreender a sua busca pelo conhecimento Isabel tem quem a sustente devidamente e Elliott (ocupando uma porção considerável da narrativa, de modo a evidenciar as convenções sociais da época e o contraste entre elas e os ideais de Larry) continua bem posicionado na alta sociedade.
O elo que liga todas estas personagens é o próprio autor, que narra a história, participando nela. Em termos técnicos, o livro está dividido em 7 partes, com aproximadamente 5 ou 6 capítulos cada uma. A escrita de Somerset Maugham é feita de modo coloquial, pelo que facilita a leitura.
Este é um livro neo-realista que critica o modo como as convenções sociais da época podem reprimir e fazer sofrer alguém, como já dito anteriormente: através de Larry – o oposto a essas mesmas convenções – e através de Elliott, a personificação dessas mesmas convenções. Mas também é um livro que nos mostra, também através de Larry, que é possível ultrapassar essas mesmas convenções sociais e atingir os nossos objectivos, não os da sociedade.
O fio da navalha é uma expressão que significa o momento crucial, o que não deixa de ser um título adequado, já que toda a história se desenrola a partir dum (o momento em que o amigo de Larry sacrifica a sua vida por ele) e que o motivo por que foi escrita também foi um momento crucial – único em que o Larry, pela primeira vez, decide-se a contar o que tinha feito até ao mais ínfimo pormenor.
Este é um daqueles livros que, mais do que somente entreter, obriga o leitor a uma reflexão. Neste caso: qual o sentido da vida?, por que razão fazer o que os outros nos dizem e não o que nós queremos?, o que é verdadeiramente importante, o conhecimento, o dinheiro ou o prestígio?.
Curiosamente, o autor dá resposta a estas perguntas no final da obra, revelando que a história foi um sucesso pois cada um teve o que desejava. E, se nos atentarmos, talvez seja esse o sentido da vida: fazer o que desejamos fazer. Em suma, este é um livro que retrata a busca incessante de um rapaz à descoberta de si mesmo e que a sua busca e as suas dúvidas também as temos – portanto, é um livro intemporal e filosófico.
*Na imagem: fotografia da capa do livro da ASA (3ª edição, Agosto de 2010)