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Em poucas palavras, este é um livro arrebatador que relata a história de um funcionário da Conservatória Geral do Registo Civil que procura obstinadamente uma mulher que nunca viu na vida, conhecendo apenas o que consta no verbete do seu registo (que, acidentalmente, foi parar às mãos do Sr. José, o dito funcionário, a única personagem com nome deste romance).
O Sr. José faz colecção de recortes de revistas, jornais, etc. sobre pessoas famosas e, sentindo que a sua colecção é, de certo modo, defeituosa, decide completá-la com os registos que constam nos verbetes da Conservatória, à qual tem acesso através da sua casa.
É numa dessas buscas para complementar a sua colecção que, sem querer, o Sr. José acaba por levar consigo o verbete de uma mulher comum de trinta e seis anos, no qual «constam dois averbamentos, um de casamento, outro de divórcio».
«Como este verbete há de certeza centenas no ficheiro, senão milhares, portanto não se compreende por que estará o Sr. José a olhar para ele com uma expressão tão estranha, que à primeira vista parece atenta, mas que é também vaga e inquieta, possivelmente é este o modo de olhar de quem, aos poucos, sem desejo nem recusa, se vai desprendendo de algo e ainda não vê aonde poderá deitar a mão para tornar a segurar-se. Não faltará quem venha a apontar supostas e inadmissíveis contradições entre inquieto, vago e atento, são pessoas que se limitam a viver assim como assim, pessoas que nunca se encontraram com o destino pela frente.»
De facto, a partir do momento em que o Sr. José tem o verbete da mulher desconhecida, o seu destino passará a ser outro, resumir-se-á à procura da mulher, à obsessão que parece não ter fim. Nem ele próprio consegue perceber as razões da sua obstinada busca. Saramago define-a como uma «angústia metafísica» (se bem que referindo-se à colecção do funcionário); mais tarde, no final do romance, o tecto da casa do Sr. José aponta o amor como a causa principal dessa investigação.
«Que não tinhas nenhum motivo para ires à procura dessa mulher, a não ser, A não ser, quê, A não ser o amor, É preciso ser-se tecto para ter uma ideia tão absurda, Creio ter-te dito alguma vez que os tectos das casas são o olho múltiplo de Deus, Não me lembro, Se não to disse por estas precisas palavras, digo-o agora, Então diz-me também como poderia eu gostar de uma mulher a quem não conhecia, a quem nunca tinha visto, A pergunta é pertinente, sem dúvida, mas só tu é que poderás dar-lhe a resposta, Essa ideia não tem pés nem cabeça, É indiferente que tenha cabeça ou tenha pés, falo-te doutra parte do corpo, do coração, esse que vocês dizem ser o motor e a sede dos afectos, Repito que não podia gostar de uma mulher que não conheço, que nunca vi, salvo em alguns retratos antigos, Querias vê-la, querias conhecê-la, e isso, concordes ou não, já era gostar, Fantasias de tecto, Fantasias tuas, de homem, não minhas (…)»
O Sr. José não olha a meios para encontrar a mulher desconhecida ou, na melhor das hipóteses, encontrar informações sobre a sua vida: falsifica credenciais, invade a Conservatória, assalta uma escola (na qual encontra retratos da mulher), entrevista pessoas.
Não consegue senão pequenas informações, insignificantes comparadas com o percurso de uma vida, até que um dia, enquanto trabalhava, descobre que a mulher desconhecida morreu. A sua pesquisa poderia dar-se por terminada, a mulher morreu, não haveria mais que descobrir da sua vida; estando morta, o Sr. José não poderia chegar à sua beira e perguntar-lhe “Diga-me de si”.
«E pensou que, nesse momento, quando a tivesse, enfim, na sua frente, saberia dela tanto como no dia em que tomou a decisão de a procurar, isto é, nada, que se pretendesse saber quem ela realmente era teria de começar a procurá-la outra vez e que a partir daí poderia ser muito mais difícil, se, ao contrário das pessoas famosas, que gostam de mostrar-se, ela não quisesse ser encontrada, Assim é, Mas, estando morta, poderá continuar a procurá-la, ela já não se importará.»
Continuar a procurá-la é, efectivamente, o que o Sr. José faz. Começa as suas averiguações no cemitério da cidade, onde fica a saber que a mulher desconhecida se suicidou. Enquanto estava no cemitério, encontra um pastor de ovelhas que troca os números das campas, pois acredita que dessa maneira dá um merecido sossego às pessoas.
«Nenhum dos corpos que estão aqui enterrados corresponde aos nomes que se lêem nas placas de mármore, Não acredito, Digo-lhe eu, E os números, Estão todos trocados, Porquê, Porque alguém as muda antes de serem trazidas e colocadas as pedras com os nomes, Quem é essa pessoa, Eu, Mas isso é um crime, protestou indignado o Sr. José, Não há nenhuma lei que o diga, Vou denunciá-lo agora mesmo à administração do Cemitério, Lembre-se de que jurou, Retiro o juramento, nesta situação não vale, Pode-se sempre pôr a palavra boa sobre a má palavra, mas nem uma nem outra poderão ser retiradas, palavra é palavra, juramento é juramento, A morte é sagrada, A vida é que é sagrada, senhor auxiliar de escrita, pelo menos assim se diz, Mas tem de haver, em nome da decência, um mínimo de respeito por quem morreu, vêm aqui as pessoas recordar os parentes e amigos, a meditar ou a rezar, a pôr flores ou a chorar diante de um nome querido, e vai-se a ver, por culpa da malícia de um pastor de ovelhas, o nome autêntico de quem ali está é outro, os restos mortais venerados não são de quem se supõe, a morte, assim, é uma farsa, Não creio que haja maior respeito que chorar por alguém que não se conheceu (…) Ainda não lhe disse por que razão comecei a trocar as chapas em que estão escritos os números das sepulturas, Duvido que me interesse sabê-lo, Duvido que não lhe interesse, Diga lá, Se for certo, como é minha convicção, que as pessoas se suicidam porque não querem ser encontradas, estas aqui, graças ao que chamou a malícia do pastor de ovelhas, ficaram definitivamente livres de importunações, na verdade, nem eu próprio, mesmo que o quisesse, seria capaz de lembrar-me dos sítios certos, a única coisa que sei é o que penso quando passo diante de um desses mármores com o nome completo e as competentes datas de nascimento e morte, Que pensa, Que é possível não vermos a mentira mesmo quando a temos diante dos olhos.»
A partir daqui, o Sr. José procura saber as razões que levaram a mulher desconhecida a acabar com a sua própria vida, tendo a esperança de que haja alguma carta, umas anotações, um diário onde ela expôs os seus motivos. Vai falar com os pais dela, mas apenas consegue saber que era professora de matemática do colégio onde estudou e a sua morada. A mãe da mulher dá as chaves da casa da filha ao Sr. José, para que este encontre o pretendido: conhecer, de facto, a razão exacta, as causas directas do suicídio.
«A sua filha deixou alguma carta, Nenhuma carta, nenhuma palavra, Quer dizer que se suicidou assim sem mais nem menos, Não terá sido assim sem mais nem menos, teve com certeza as suas razões, mas nós não as conhecemos, A minha filha era infeliz disse a mulher, Ninguém que seja feliz se suicida, cortou o marido impaciente, E era infeliz porquê, perguntou o Sr. José, Não sei, já em rapariga era triste, eu pedia-lhe que me dissesse o que tinha e ela respondia-me sempre com as mesmas palavras, não tenho nada, mãe.»
As reflexões sobre o suicídio continuam no final do romance, quando o Sr. José decide ir à escola falar com o director – em vão, pois, mais uma vez, não consegue saber qual a razão do acto desesperado da mulher desconhecida, que foi uma surpresa para todos (aliás, creio que qualquer morte é, em qualquer situação, uma surpresa).
«Pergunto-me, disse o director, se o suicídio poderá ser explicado. Refere-se a este, Refiro-me ao suicídio em geral, Às vezes deixam cartas, É certo, o que não sei é se se poderá chamar explicação ao que nelas se diz, na vida não faltam coisas por explicar (…) Provavelmente tinha razão quando disse que talvez nenhum suicídio possa ser explicado, Racionalmente explicado, entenda-se, Tudo se passou como se ela não tivesse feito mais do que abrir uma porta e sair, Ou entrar, Sim, ou entrar, conforme o ponto de vista, Pois aí lhe fica uma excelente explicação, Era uma metáfora, A metáfora sempre foi a melhor forma de explicar as coisas.»
O Sr. José não encontrou nenhuma carta, nenhuns apontamentos, nem mesmo umas folhas soltas, nada, na casa da mulher desconhecida. A dada altura, deixou de procurar, apercebendo-se de que não lhe adiantaria coisa alguma encontrar a explicação do suicídio, essa explicação não restituiria a vida da mulher.
«Para quê, perguntou, suponhamos que tal papel existe, que eu o encontro, que o leio, não será por lê-lo que os vestidos dela deixarão de estar vazios, a partir de agora os exercícios de matemática não terão solução, não se descobrirão as incógnitas das equações, a colcha da cama não será afastada, a dobra do lençol não se ajustará sobre o peito, o candeeiro à cabeceira não iluminará a página do livro, o que acabou, acabou».
O romance acaba assim, incógnito, misterioso, sem saber como e porquê a mulher morreu, sem saber o que foi do Sr. José a seguir. Na verdade, esses pormenores são insignificantes, não interessando para a história da narrativa. Este é um romance sobre a vida, sobre a morte, sobre a impotência do ser humano perante essas duas realidades, enfim, sobre a existência. Um romance sobre se realmente encontraremos quem procuramos.
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