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Entusiasmo pela leitura

26/03/2012



Parte de um capítulo de Netotchka, de Dostoiévski. Vejam aqui mais pormenores sobre este romance inacabado.

(…) Um dia, depois de jantar, encontrei no chão a chave da biblioteca; a curiosidade apossou-se de mim, abri e entrei.

Era uma vasta sala, com muita luz, guarnecida de grandes estantes envidraçadas, cheias de livros. (…) Até então só tivera na minha mãe livros escolhidos com o máximo cuidado. Fácil era supor que me ocultassem muita coisa. Este o motivo porque, tomada de uma irresistível curiosidade, tremendo de alegria e susto, abri uma das estantes e tirei o primeiro livro que estava ao meu alcance: era um romance.

(…) Tive o cuidado de só entrar na biblioteca oito dias depois de me haver assegurado de que não havia suspeita alguma, e durante a ausência do secretário.

Desde então, dediquei-me à leitura com furor, era uma paixão. Todas as minhas aspirações, todos os entusiasmos da minha adolescência, que muito cedo haviam desenvolvido o meu espírito, tomavam um rumo novo que supos por muito tempo a verdadeira saída da minha situação.

Depressa fiquei tão fascinada, a minha imaginação estendeu-se tão largamente, que me pareceu esquecer o mundo exterior.

A sorte parecia deter-me no limiar da nova vida que eu tão fortemente desejava penetrar e com qual sonhava dia e noite. Mas, antes de me deixar seguir por este caminho desconhecido, o destino impelia-me até uma altura de onde me mostrava num mágico panorama, numa atraente luminosa perspectiva, todo o meu futuro. Devia viver esse futuro depois de o ter apreendido nos livros e avistado nos meus sonhos, nas minhas esperanças, nos meus apaixonados enlevos, nas doces emoções da minha alma juvenil.

Li ao acaso. O acaso serviu-me bem para os dois primeiros volumes; depois, a minha existência fora tão nobre, tão austera, que eu não podia ser solicitada por leituras maliciosas. O meu instinto de criança, a minha mocidade e todo o meu passado protegiam-me. A consciência tinha como que iluminado de uma só vez toda a minha vida. De facto, lendo uma página, parecia ter lido todas. E como não ir até ao esquecimento do presente, isolada como estava da realidade, quando, defronte de mim, em cada livro se incarnavam as leis do mesmo destino – o mesmo espírito de aventura que paira sobre a vida dos homens? Esta lei de que eu suspeitava, tratei, com todas as forças e com todas as faculdades sobreexcitadas da minha imaginação, de adivinhá-la.

Dia a dia se fortalecia cada vez mais na minha alma a esperança, e o meu entusiasmo pelo futuro se tornava mais violento. Queria viver essa vida que descortinava nas minhas leituras e que me aparecia revestida de todos os esplendores da arte, de todas as seduções da poesia. Mas, como já disse, a minha imaginação tinha grande ascendente sobre a minha impaciência; só era animosa em sonhos, pois, na realidade, o futuro aterrorizava-me. Num tácito acordo com a consciência, resolvi que era preciso contentar-me com a descrição destas belas quimeras até ao dia em que pudesse realizá-las no mundo aleatório e romanesco onde só entrevia alegria e sublimidade; a fatalidade, quando a admitia, representava apenas um papel passivo, passageiro e necessário para fazer suaves contrastes, para originar súbitas mudanças de destinos, evoluindo para os desenlaces felizes, nos quais, invariavelmente, acabavam todas essas histórias.

E não será isso que a leitura nos faz? Levar-nos a mundos fantasiosos e, consequentemente, melhores, distanciar-nos da miserável realidade e fazer-nos esquecer das nossas tristezas? Apenas quem lê é quem sabe disto...
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