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O psicopata de Wilde

06/11/2011

Imagem daqui.


Esta semana tenho estado a reler O Retrato de Dorian Gray. Eu sei, eu sei, com tantos livros para ler, porque tive que reler um livro? Porque me apeteceu, ora! E porque creio que mereço fazer o que quero fazer, nem que seja de quando em vez, nem que seja ler o que quero - pelo menos a providência isso não me tira.

Nunca antes tinha relido um livro, apenas passagens/excertos sublinhados, assinalados e anotados (ainda hoje pego muitas vezes n'O Sonho de um Homem Ridículo, de Dostoiévski, e leio as primeiras páginas). E posso assegurar que reler um livro é uma das coisas mais extraordinárias que se podem fazer, é como reencontrar um velho e bom amigo que não vemos há muito tempo pela incontrolável e imperceptível forças das circunstâncias: lembramos do porquê de sermos amigos, lembramos de aspectos que nos tínhamos esquecido e, apesar do tempo passado, descobrimos que continuamos amigos, que a amizade não esmoreceu. 

Ou seja, ao reler um livro lembramo-nos das passagens que nos marcaram mais, dos pormenores que nos tínhamos esquecido por completo e descobrimos que continuamos a gostar dele, tanto ou mais como da primeira vez que o lemos. É essa a magia da amizade e de reler um livro: as coisas nunca mudam, apenas nós e a percepção que temos delas.

Porquê O Retrato de Dorian Gray? Porque não a Crónica de Uma Morte Anunciada, de Gabriel García Márquez? Ou o Eterno Marido, de Dostoiévski? Ou ainda Tempos Difíceis, de Dickens e Madame Bovary, de Flaubert? Não sei. Apeteceu-me ler Dorian Gray.

Inconscientemente, talvez a razão de reler este livro fosse por causa da minha vontade de querer ver o filme (o de 2009) - que a crítica diz ser muito mal adaptado. O facto é que, mais tarde ou mais cedo, eu teria realmente de reler a obra, nem que fosse para fazer análises e críticas e juntá-las ao meu cânone sobre Oscar Wilde.

Desde a última vez que li o livro, já li mais algumas obras de Wilde. E pude aperceber-me que o  escritor (melhor será dizer dramaturgo) vai "repetindo" as ideias/observações das suas personagens - daí que tenha as suas cínicas personagens-tipo. Não que eu não tivesse reparado nisso antes, mas desta vez achei o facto mais perceptível.

Juntamente com esta espécie de epifania, veio o entendimento de que, seriamente, a repetição das ideias/observações seria uma (continuação de uma) dura crítica à sociedade e não carência de originalidade literária e iluminação de espírito - ninguém neste mundo pode acusar Oscar Wilde por essas faltas gravíssimas.

Ao reler um livro, qualquer que ele seja, apercebemo-nos de que existem pormenores, subtilezas que não tínhamos dado por elas (ou esquecido totalmente). No meu caso, comecei a ver Dorian Gray como um psicopata, mesmo antes de cometer crimes hediondos - não pelo facto de cometer esses crimes e levar uma vida de depravação, mas simplesmente devido à sua forma de pensar e de agir, alternando entre a ansiedade extrema e o derradeiro êxtase e orgulho, a manipulação e o aproximar-se dos outros para lhes fazer algum mal (pois não podia ser só coincidência as suas relações acabarem sempre mal, mesmo que Wilde justifique isso como a influência que Dorian exercia sobre elas). 

Talvez seja a minha fascinação por psicopatas a falar mais alto (fascinação normal como as outras...) mas estou em crer que Oscar Wilde criou um psicopata. De qualquer maneira, é inegável que esta magnífica obra, pelo menos para mim, retrata de uma maneira perfeita o vazio e superficialidade de muitos indivíduos, mesmo nos dias de hoje, que julgam erradamente que a beleza é tudo.

Digo que julgam erradamente, pois basta-nos ver a desmoralização de Dorian Gray e a decadência que a sua mente vai sofrendo, e o eterno jovem sofre verdadeiramente com o seu aspecto físico (mas não por causa dele, ressalve-se), para vermos que a premissa de que a beleza é o mais importante é inteiramente desacertada, em toda a sua essência.

No final do livro, Wilde mostra-nos que afinal Dorian Gray tinha uma certa consciência do que fazia (sempre a teve, ao longo do livro) e que queria redimir-se e recuperar a alma para se livrar do próprio sofrimento; todavia, era demasiado tarde para isso - talvez a alma de alguém nunca volte a ser o que era depois de corrompida.

Não estou a afirmar que a ideia principal da obra é crer que a beleza é uma maldição, mas pode sê-lo se a tomarmos como o principal (mais uma vez, esta é apenas a minha ideia). De qualquer maneira, vale a pena investir no pensamento de que a beleza está para além do exterior (e de que o que é bonito por fora pode não o ser por dentro).

Pensamentos e ideias comuns, que todos nós sabemos e que todos nos ensinam, mas que Wilde descreveu-os com mestria, com o bónus de criticar a alta sociedade (supérflua) inglesa do séc. XIX. Em suma, uma obra-prima de um grande artista.

*Já vi o filme e está, realmente, muito mal adaptado. A história em si é boa, mas não tem nada a ver com o livro.
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