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Os Conjurados, de Jorge Luís Borges

05/01/2011


Jorge Luís Borges nasceu em 1899 na Argentina e foi um escritor, poeta, tradutor e crítico literário. São os seus trabalhos poéticos, talvez, os mais conhecidos. As suas obras abordam principalmente temas como filosofia, metafísica, mitologia e teologia.

Os Conjurados, livro editado pela primeira vez em 1985, é a sua última obra, da qual deixo aos leitores alguns excertos:

On his blindness

Ao cabo dos anos o que me rodeia
é uma obstinada neblina luminosa
que reduz as coisas a uma coisa
sem forma nem cor. Quase a uma ideia.
A vasta noite elementar e o dia
cheio de gente são essa neblina
de luz incerta e fiel que não declina
e que se oculta na madrugada. Quereria
ver uma cara uma vez. Ignoro
a inexplorada enciclopédia, o prazer
de livros que é dado à minha mão reconhecer,
as altas aves e as luas de oiro.
Aos outros cabe-lhes o universo;
a mim, penumbra, o hábito do verso.

A posse do ontem

Sei que perdi tantas coisas que eu não poderia contá-las e que essas perdas são agora o que é meu. Sei que perdi o amarelo e o preto e penso nessas impossíveis cores. Como não pensam os que vêem. O meu pai morreu e está sempre a meu lado. Quando quero escandir os versos de Swinburne, faço-o, dizem-me, com a voz dele. Ilíon passou, mas Ilíon perdura do hexágono a que chora. Israel aconteceu quando era uma antiga nostalgia. Todo o poema, com o tempo, é uma elegia. Nossas são as mulheres que nos deixaram, já não sujeitos à véspera, que é angústia e aos alarmes e terrores da esperança. Não há outros paraísos que não sejam paraísos perdidos.

Cinza

Um quarto de hotel, igual a tantos.
A hora sem metáfora, a sesta
que nos desagrega e perde. A frescura
da água elementar na garganta.
A névoa tenuemente luminosa
que envolve os cegos, noite e dia.
A direcção do que talvez esteja morto.
A dispersão do sonho e dos sonhos.
A nossos pés um vago Reno ou Ródano.
Um mal-estar que já partiu. Coisas
demasiado inconspícuas para o verso.

Outro fragmento apócrifo

Um dos discípulos do mestre queria falar a sós com ele, mas não se atrevia. O mestre disse-lhe:
-Diz-me que preocupação te oprime.
O discípulo respondeu:
-Falta-me coragem.
O mestre disse:
-Eu dou-te a coragem.
A história é muito antiga, mas uma tradição, que pode muito bem não ser apócrifa, conservou as palavras que esses homens disseram, nos confins do deserto e da madrugada.
Disse o discípulo:
-Cometi há três anos um grande pecado. Os outros não sabem mas eu sei, e não posso olhar sem horror a minha mão direita.
Disse o mestre:
-Todos os homens pecaram. Não é próprio dos homens não pecar. Aquele que olhar um homem com ódio já o matou no seu coração.
Disse o discípulo:
-Há três anos, em Samaria, matei um homem.
O mestre guardou silêncio, mas o seu rosto transtornou-se e o discípulo temeu a sua ira. Disse por fim:
-Há dezanove anos, em Samaria, gerei um homem. Já te arrependeste do que fizeste.
Disse o discípulo:
-Assim é. As minhas noites são de prece e de pranto. Quero que me dês o teu perdão.
Disse o mestre:
-Ninguém pode perdoar, nem mesmo o Senhor. Se um homem fosse julgado pelos seus actos, não havia ninguém que não merecesse o inferno e o céu. Tens a certeza de seres ainda aquele homem que matou o seu irmão?
Disse o discípulo:
-Já não entendo a cólera que me fez desembainhar o punhal.
Disse o mestre:
-Costumo falar por parábolas para que a verdade se grave nas almas, mas falarei contigo como um pai a um filho. Eu não sou aquele homem que pecou; tu não és aquele assassino e não há qualquer razão para continuar a ser seu escravo. Tens os deveres de qualquer homem: ser justo e feliz. Tu mesmo tens de salvar-te. Se alguma coisa ficou da tua culpa, eu carregarei com ela.
O resto daquele diálogo perdeu-se.

Todos os ontens, um sonho

Ninharias. O nome de Muraña,
uma mão dedilhando uma guitarra,
uma voz, hoje pretérita, que narra
para a tarde uma perdida façanha
de bordel ou de pátio, uma porfia,
dois ferros, hoje ferrugem, que chocaram
e alguém caiu morto, bastaram
para erguer uma mitologia.
Uma mitologia ensanguentada
que agora é o ontem. A sábia história
das aulas não é menos ilusória
que essa mitologia do nada.
O passado é argila que o presente
lavra por capricho. Interminavelmente.

Milonga do morto

Sonhei-o nesta casa
entre paredes e portas.
Deus ao homem permite
sonhar coisas que são certas.

Sonhei-o pelo mar dentro
numas ilhas glaciais.
Que nos digam o resto
a campa e os hospitais.

Uma dessas províncias
do interior foi sua terra.
(Não convém que se saiba
que morre gente na guerra.)

Tiraram-no do quartel
puseram-lhe nas mãos
as armas e mandaram-no
morrer com seus irmãos.

Agiu-se com a maior prudência,
falou-se de modo prolixo.
Entregaram-lhe ao mesmo tempo
o rifle e o crucifixo.

Ouviu inúteis arengas
de inúteis generais.
Viu o que nunca tinha visto,
o sangue nos areais.

Ouviu vivas e ouviu morras,
ouviu o clamor da gente.
E ele só queria saber
se era ou não era valente.

Soube-o naquele momento
em que lhe entrava a ferida.
Disse Não tive medo
quando o deixou a vida.

A sua morte foi uma secreta
vitória. Não pasmem
que me dê inveja e pena
o destino daquele homem.

1982

Um monte de pó formou-se no fundo da prateleira, por detrás da fila de livros. Os meus olhos não o vêem. É uma teia de aranha ao meu tacto.
É uma parte ínfima da trama a que chamamos história universal ou processo cósmico. É parte da trama que abarca estrelas, agonias, migrações, navegações, luas, pirilampos, vigílias, naipes, bigornas, Cartago e Shakespeare.
Também são parte da trama esta página, que acaba por não ser um poema, e o sonho que sonhaste ao alvorecer e que já esqueceste.
Há um fim na trama? Schopenhauer julgava-a tão insensata como as caras ou os leões que vemos na configuração de uma nuvem. Há um fim da trama? Esse fim não pode ser ético, já que a ética é uma ilusão dos homens, não das inescrutáveis divindades.
Talvez o monte de pó não seja menos útil para a trama do que as naus que carregam um império ou que o perfume do nardo.

*Na imagem: o autor
**Download do ebook do livro aqui.
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