“Um pressentimento insensato de felicidade o aperta em seus laços mentirosos.”
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Santa Miséria. Como o próprio nome indica, não podemos esperar encontrar uma narrativa feliz aqui e o autor, Frans Eemil Sillanpää, começa de maneira peremptória este romance ao revelar a morte por fuzilamento de Jussi (ou Juhá ou Janne) Toivolá. Portanto, toda esta narrativa é uma analepse que relata a vida lastimosa de Jussi: desde a nascença até à sua morte, Jussi raramente (talvez nunca) encontrou momentos de pura felicidade.
Este romance, como já dito, conta-nos a história da vida de Jussi Toivolá que, nos seus últimos anos de vida, participa na guerra civil finlandesa, muito em parte por conta do filho que lhe enviava jornais socialistas. Na infância, os seus pais não lhe prestavam muita atenção; passou a adolescência e a vida adulta a trabalhar arduamente nos campos (cultivar) ou nas florestas (arranjar lenha) e, quando finalmente morreu (via a morte como libertação), morreu porque foi acusado de um crime que não fez. Em suma, esta foi a vida de Jussi Toivolá.
Quem não gosta de descrições certamente que não irá gostar deste livro, pois todo ele é descrição. Não descrição física, isto é, de espaços, de pessoas, mas sim de descrição psicológica, de personalidade, de estados de espírito, de pensamentos, de ideias, etc. E é através destas descrições psicológicas que nos apercebemos de como a vida era difícil para Jussi.
Outro dos aspectos interessantes do livro é que raramente se encontra diálogos. Ou seja, praticamente que não há discurso directo, mas também não há o discurso indirecto, o que não quer dizer que o livro é aborrecido - porque se não há o discurso das personagens, há a descrição das mesmas – apenas torna-o “curioso”. A escrita e linguagem são acessíveis, pelo que o livro torna-se, assim, fácil de ler.
Falei, acima, da ideia da morte como libertação. Acontece que para muitos camponeses finlandeses da época, a morte era vista desta maneira: se alguém da família morresse (no caso de Jussi, a mulher e dois filhos) era menos uma boca para alimentar; se o próprio morresse era o fim do seu sofrimento.
Podemos considerar este livro como neo-realista, já que faz uma análise das condições de vida dos camponeses e acompanha uma transformação social. À medida que vamos lendo o livro é-nos impossível ficar indiferentes à miséria relatada: Frans Eemil Sillanpää conseguiu um excelente trabalho com as descrições.
A edição do livro que tenho é uma edição de 1943 da Editorial Inquérito, que me custou um singelo euro (um pechincha, portanto), velha, rasgada, com páginas amarelas e umas outras que já estão verdes. Mas o verdadeiro proveito desta edição é que eu pude verificar na prática a evolução da língua portuguesa; não que as palavras tenham mudado drasticamente, porém muitos acentos foram retirados das vogais abertas e fechadas; antes usava-se o trema; os pontos de exclamação e de interrogação colocavam-se antes e no fim da frase como se faz na língua castelhana; as estações do ano escreviam-se com minúscula; entre outros pormenores. Deixo aos leitores pequenos exemplos: dêstes, rebôrdo, dêles, pôsto, fôsso, quási, idéia, dezóito, faїscava, cordealidade, estritacmente, preguntar, quere, umedecer, ¿porque…?, …
Deixo-vos com alguns excertos do livro:
Porque não fora o seu casamento semelhante ao das outras filhas de camponeses? Dir-se-ia que o ser humano deve abjurar de toda a espécie de aspirações! – p. 23
Olha fixamente a obscuridade, e, como por efeito do álcool se lhe entorpece no espírito o sentido minucioso das coisas, vê apenas os traços mais grossos e mais simples da sua vida e da sua situação em tudo quanto têm de abjecto. Contra esta terra, contra este céu e contra esta gente de Kokemaki são inaplicáveis e seriam ineficazes os maus tratos. Deram resultados contra outros. É dolorosíssimo pensar que existem coisas em que não se pode bater e de que não podemos libertar-nos por esse ou por outro processo. – p. 25
O ano que se seguiu à morte da mãe foi o mais delicioso para as meninas; o pai, quase constantemente fora, não lhes batia. – p. 27
Em volta deles suspira a imensa noite obscura das solidões, único ser que vê os homens inconstantes penarem, desamparados, no oceano do tempo. – p. 32
Por essa época, a ordem das coisas começava a já vacilar. Abatera-se o primeiro dos graves anos de miséria sobre vastíssimos espaços da Finlândia. Mas os vários habitantes da aldeia longínqua continuavam sendo agitados no oceano do tempo: pouco depois de 1860, as perspectivas do futuro eram ainda, em geral, muito obscuras. – p. 37
A vida tinha uma trama de cor cinzenta, indistinta, e essa monotonia exigia que os homens reparassem um pouco nas habilidades das mulheres. Não fica mal a um homem notá-las de vez em quando. – p. 40
No decurso desse Outono, Penjami Nikkila e Maija tiveram apenas dois dias de felicidade, enquanto Penjami esteve em Tempere. Como o centeio da herdade não prestava para semear, tinham reunido o gado disponível para o vender e comprar boas sementes. No seu regresso, Penjami trouxe muito poucas. Em contrapartida, trazia aguardente e contraíra a primeira dívida na loja. Maija conseguiu ainda reservar alguns punhados de sementes para as trocar por café. Mas Penjami deu por isso e seguiu-se uma disputa que durou dois dias e degenerou, por vezes, em pancadaria. – p. 43
Desta vez, aliás, estes seres preocupados procuram instintivamente não pensar no Natal que chega. Não sentem pressa, não querem ver-se juntos na paz comum desse dia. Nesses indivíduos ignorantes, de dura sensibilidade, foi o íntimo ser afinado durante numerosas gerações por uma natureza melancólica e misteriosa. Na noite que se torna mais espessa, alguns julgam sentir o ruído das asas do anjo de Natal, recordação da longínqua infância. Essa recordação pode tornar mais lentos os passos do viajante solitário, e o espírito detém-se a pensar no incerto futuro, no Natal de um ano de fome. Assim, todos se esforçam por se demorarem fora de casa o mais possível… - p. 45
Todos os aspectos da vida se tornavam cada vez mais pálidos. – p. 51
Homens e mulheres olham com olhar vago, e os queixos das crianças tremem ao mastigar os acepipes: como se, com cada bocado, engolissem invisíveis lágrimas. – p. 52
Penjami ia morrer e não lhe seria dado assistir à grande mudança, visto que ele próprio não mudara, não ousara transformar-se. Perder-se-ia a sua alma, iria para o inferno? – p. 56
Morria-se ali em silêncio, sem protesto, e os milhares de mortos que repousam nos túmulos de areia admiraram-se por certo, quando, cinquenta anos mais tarde, nas pulsações desta artéria de ferro, distinguiram as palavras: “Está cheio, a transbordar, o cálice da amargura”. E disseram então: “Só hoje? Já nessa época estava bastante cheio!” – p. 66
Para o antigo Jussi Nikkila, que se chamava gora Jussi Toivolá, este Verão e os que se seguiram foram a época mais notável da sua juventude, porque foi nessa época que vivei mais solitário – p. 70
“Onde irei finalmente parar?” Esta pergunta fundamental na vida de Jussi, surgia-lhe, muitas vezes aos espírito, quando qualquer aresta do seu ser embatia contra um obstáculo externo, e assim ficava a ruminar na solidão. – p. 83
A riqueza é a forma mais notável da felicidade na terra, e a felicidade constitui sempre uma espécie de prova. Trata-se de saber se um homem é capaz de suportar a felicidade. – p. 87
No mais obscuro fundo da consciência, correntes dolorosas vão do presente ao passado; como se o ser mais íntimo entrasse no futuro olhando o que já fora. A existência deste homem encontra-se num beco sem saída. – p. 99
As visitas mais estimadas são as que não precisam de convite. – p. 103
Nunca na vida de Jussi acontecera (e nunca mais aconteceu) que lhe fizessem tão claramente justiça. – p. 108
O dinheiro é uma coisa estranha que parece exigir de nós não se sabe o quê. – p. 109
É assim o mundo: acabamos sempre por ficar sozinhos. – p. 110
Passava quase sempre despercebido; ninguém se importava com ele. Muita gente vive, durante os anos de vagabundagem da juventude, a época mais rica da existência, cujas aventuras nunca se cansa de contar, uma vez que o tempo passado as dourou. Não acontecia isso a Jussi. – p. 113
A atmosfera da igreja libertava-o da tensão inexplicável que sentira durante todos os anos em que a sua vida caminhara, e que o seu pensamento concebera num vago sentimento de insegurança. O que os anos acumularam pode libertar-se num só momento. – p. 115
Nunca se pode ver pelas aparências a riqueza que um homem possui. – p. 121
Há de tudo, só não há momentos de harmonia: na goela do lobo já ninguém ama o semelhante. São tão insignificantes os breves momentos passados, nos dias feriados, em mangas de camisa, à porta da cabana, que não se pode levá-los em conta. – p. 124
Via em frente dele Juhá, Riina e o dinheiro: três coisas que se consideram suficientes para formar um arranjo de vida cheio de promessas, mas de que este homem já idoso e experiente pressentia a irreparável fragilidade. – p. 130
Enquanto dormia, chegavam-lhe as melodias do violino misturadas ao barulho, criando na sua consciência adormecida uma espécie de felicidade excepcional que esse vagabundo da vida nunca mais experimentou, nem acordado, nem em sonhos. – p. 133
O pretenso conteúdo da vida dava a cada dia não só um ar diferente, mas, também, monotonia invencível. – p. 136
Domingo de Verão. Janne está sentado em mangas de camisa no pátio, e pensa na melhoria geral da sua existência. Era como que uma obsessão. – p. 140
É um complexo de forças que, num desacordo aparente, nem por isso deixam de conduzir as coisas com oculto destino. – p. 141
Mesmo as pessoas mais fortes são muito fracas em face das forças naturais. – p. 145
Nesta classe não se verificam, como nas classes superiores, alterações definitivas. Dão-se apenas leves abalos que levam o curso da vida de uma fase a outra. – p. 150
Juhá julga discernir agora claramente o que é a vida. É uma substância acre e estúpida de que o homem recebe uma parcela grande demais para ele: de tal maneira que se encontra sempre perplexo e, mais do que isso, sempre prestes a ser esmagado. E isso até ao momento em que morre sem poder mais. – p. 163
E assim iam passando os anos, e assim passaram… até ao momento em que estalou a grande guerra, pelos sofrimentos da qual a humanidade tinha de passar para cumprir as suas tarefas do século XX. – p. 200
Vai com certeza morrer… Nunca mais, decerto, voltará a seguir aquele mesmo caminho… Nunca realizou nada plenamente; viveu com uma mulher, trabalhou numa herdade, foi socialista; tudo isto dá, mais ou menos, o mesmo. Desempenhou-se como devia. Agora só lhe resta morrer. – p. 240
*Na imagem: Frans Eemil Sillanpää