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A aldeia de Stepantchikovo e os seus habitantes, de Dostoiévski

23/02/2014

*O texto tem spoilers.

Caricatura do autor. Imagem daqui

«E pus-me a falar com ardor de que, na mais desgraçada criatura, poderiam ainda conservar-se sentimentos humanos; de que as profundezas da alma humana eram insondáveis; de que não se podia desprezar os caídos mas, pelo contrário, era preciso ressuscitá-los; de que as medidas universalmente reconhecidas do bem e do mal não eram correctas, etc., etc.»

Primeiro. O livro tem no título uma palavra árdua de pronunciar: demorei semanas para dizer Stepantchikovo sem gaguejar, e agora presumo que levarei outras tantas semanas a escrever correctamente a palavra sem ter de consultar o livro. Mas a questão aqui não é a dificuldade que o título da obra poderá trazer. A questão é que este título pode assustar alguns leitores preocupados com o nível de experiência literária que é preciso para levar este livro adiante, sendo o raciocínio o seguinte: se o título é difícil, o livro também o será.

Segundo. O raciocínio tem tanto de lógico como de absurdo, pois não faltará quem escolha os livros pelo título ou, pelo contrário, quem ignore esse método de escolha. O facto é que ler Dostoiévski é fácil, devido ao seu estilo coloquial – o que poderá ser mais hercúleo é compreender realmente o que lá está escrito, pois o existencialismo e o realismo presentes nas obras do autor colocam questões pertinentes sobre o ser humano e as suas acções.

Terceiro. O livro foi publicado pela primeira vez em 1859 – antes das obras mais conhecidas de Dostoiévski – e não é o mais típico dos romances do autor. O livro é bem-humorado, irónico e não acontecem grandes desgraças às personagens. A história gira à volta de Fomá Opísskin, uma pessoa mesquinha outrora humilhada, que agora achincalha não só o seu benfeitor (um homem bastante tolerante), como também todos à sua volta.

Quarto. A análise do carácter humano, presente em qualquer obra de Dostoiévski, é sempre acutilante e correcta. A questão deste romance é que uma pessoa é medíocre porque já teve a sua quota-parte de desgraças, isto é, a sua mediocridade não passa de uma tentativa de evitar mais humilhação. Acontece que Fomá acaba por ser perdoado pelo seu egoísmo, pelas suas vexações, pela sua rudeza, porque fez uma boa acção que, apesar de ter sido feita apenas para seu benefício, não deixou de ser um gesto bonito. Esse gesto bonito de Fomá não foi mais do que “autorizar” o seu benfeitor a casar-se, quando antes se opunha terminantemente a tal coisa, uma vez que a rapariga não era rica. Assim sendo, a causa da desgraça passa agora a causa da felicidade – e daí o perdão.

Quinto. Se há uma lição a retirar deste livro, que seja a de que, sendo a profundeza da mente humana inescrutável, havendo boas pessoas que poderão ser malfeitoras, e más pessoas capazes de ter bons sentimentos, não cabe a nós julgar o que quer que seja. Quanto ao merecimento do perdão, esse assunto é bastante relativo, pelo que a lição retirada do livro depende da nossa interpretação do mesmo e da nossa vivência. Errar é humano e perdoar é divino, mas nem sempre é esse o caso…


Mais sobre o livro:
A Aldeia de Dostoiévski, no Pierrot Lunaire.

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